O candomblé em Nova Friburgo: um mundo desconhecido
Na história do Brasil, o município de Nova Friburgo foi a primeira experiência de imigração de europeus não portugueses. Criado em 1820 para estabelecer famílias de colonos suíços, Nova Friburgo posteriormente acolheu colonos alemães e no final do século 19 recebeu imigrantes italianos, portugueses, alemães, libaneses, espanhóis, japoneses, entre outros. Até 1983, os afrodescendentes não eram reconhecidos entre os povos formadores de Nova Friburgo. Porém, um decreto municipal colocou a bandeira do movimento negro no panteão, juntamente com a de outros imigrantes, corrigindo um erro histórico.
De um modo geral, as pessoas imaginam que Nova Friburgo foi uma exceção, que esteve à margem da sociedade escravista onde não havia muitos indivíduos escravizados. Mas não foi bem assim. O primeiro censo de abrangência nacional realizado em 1872 nos permite localizar as áreas de concentração de escravizados no município, que trabalhavam nas plantações de café. Chamou-me a atenção a existência de algumas lojas no centro da cidade, que comercializam objetos de práticas religiosas de matriz africana. Para conhecer o perfil dos clientes destes estabelecimentos comerciais entrevistei o proprietário de um deles, Pai Amaro de Xangô, um babalorixá zelador de um terreiro. O babalorixá é quem cuida do Orixá e da ancestralidade através dos rituais. Já o babalaô é o que se comunica com a ancestralidade e conhece o segredo do Orixá. A sua loja Erva Prata, na rua Leuenroth vende principalmente produtos dos rituais queto, gêge, angola e nagô, que representam o candomblé, mas comercializa também itens usados pelos umbandistas e catimbós.
O espaço de sociabilidade para a prática destas religiões de matriz africana são os “centros”, também conhecidos como “terreiros”. Existem aproximadamente mais de 150 “centros” em Nova Friburgo abrangendo o candomblé, a umbanda e o banto. Cada um deles tem o seu pai ou mãe de Santo, sendo frequentado pelos filhos de Santo. Assim como a Igreja Católica e a maçonaria têm os seus ritos para ingressar nestas comunidades, no candomblé não é diferente. Existe um rito de passagem pelo qual o iniciante deve ser submetido. Inicialmente o iniciado “morre”, ou seja, “bola para o Santo”, se “recolhe” ficando em estado catalético. Quando a pessoa “bola” os músculos enrijecem, desacelera o ritmo cardíaco, algo semelhante ao rigor mortis. O pai, a mãe ou os filhos de Santo seguram o iniciado que está completamente rígido e o conduz até os “atabaques” mostrando que o iniciado “bolou para o Santo”, ou seja, que o Santo está incorporado nele.
O Pai de Santo faz um ritual para que possa vir o Erê(criança). A partir daí o corpo amolece e o iniciado retoma todos os sentidos. O Erê é quem vai definir como será o ritual. O Pai de Santo pergunta ao Erê incorporado no iniciado: “seu menino(a) tem a “qué”(dinheiro)? Seu menino(a) tem alguma dificuldade na família que o impede de fazer o “preceito”? A pergunta sobre o dinheiro é feita pois existe um custo neste rito de passagem como roupa, alimentação e serviços. Se o Erê responde poder arcar com os custos e não haver obstáculo pela família, o iniciado vai para o “roncó”, um aposento modesto no “centro”. A partir daí o iniciado passa a ser chamado de Iaô. No “roncó”, o Iaô permanece durante 21 dias onde dorme numa esteira, sem travesseiro, sem muito conforto. O Erê é quem define a alimentação do Iaô no “roncó”, geralmente arroz sem sal e sem tempero, acaçá, água(omi), coxa do frango, mas nunca asa, pescoço e vísceras(axé). Dependendo do que estabelecer, pode passar 21 dias se alimentando apenas de arroz.
No “roncó” é feita a raspagem do mucunã(cabelo) do Iaô com uma navalha (obegirê). Em determinado dia, o Iaô senta-se no “poti” (banco) e invoca-se a sua ancestralidade, isto é, o Orixá que o Iaô vai cultuar, que pode ser Xangô, Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã, Baluaiê, etc. A partir de então, o Iaô terá um preparo para cultuar o seu Orixá realizando diversas “obrigações”. Transcorridos os 21 dias de jejum e “obrigações”, o Iaô deixo o “roncó” ocorrendo uma celebração no “centro”. Ao ser apresentado ao público, o Iaô traja uma vestimenta especial. Para festejar o novo filho de Santo, no “centro” os convidados se alimentam, bebem, dançam e recebem santo. Geralmente bebe-se o aluá, uma bebida para todos os Orixás, de Exu a Oxalá. Trata-se de uma bebida artesanal feita de maçã, pera, uva, abacaxi, cachaça ou champanhe.
Na celebração, o Pai de Santo convida um dos assistentes para ouvir o nome do Orixá que o Iaô vai pronunciar, na língua jorubá. A seguir, o Pai de Santo recolhe o nome do Orixá, fica à parte e o Iaô é entregue a uma pessoa de alta hierarquia do “centro”. Ato contínuo, o Iaô dá três voltas e uma sacudidela, um barra vento, e o Orixá se manifesta revelando o seu nome. No “queto” existe um ritual denominado de “dijina”. Quando o Iaô vai ser apresentado ao público, o Santo incorpora e envia umas palavras que é a “dijina”. O Pai de Santo anota a “dijina” e entrega ao Iaô. A “dijina” revela o Orixá que está com ele. Com 3 meses retira o “quelê”, ou seja, uma identificação do seu Orixá. O Iaô, agora filho de Santo vai passar ainda 7 anos tendo um ensinamento no “centro”. Durante este período, vai saber se será um babalorixá ou um babalaô.
No candomblé não existe altar. Assim como os gregos na Antiguidade Clássica, o simbolismo dos Orixás é feito com elementos da natureza. A água salgada é Iemanjá, o fogo é Xangô, o vento é Iansã, a água doce é Oxum, entre outros. Já a umbanda cultua os antepassados, parentes que os precederam como o caboclo, o preto velho, etc. O respeito pelos mais velhos era um valor africano. No período em que eram escravizados no Brasil, como raramente atingiam a idade avançada, em virtude da longa jornada de 15 a 17 horas de trabalho diário forçado, os idosos gozavam de um carisma de seus pares. Eram considerados líderes religiosos, protetores contra o infortúnio e intermediários entre este e o outro mundo. Os mais jovens dirigiam-se à eles respeitosamente chamando-os de pai ou mãe. Inspiravam respeito e medo por sua suposta capacidade de manipular o sobrenatural. Os idosos africanos de nascimento eram sacerdotes, adivinhos, herbolários, curandeiros, imãs e médiuns. Para os seus senhores eram feiticeiros que tramavam contra eles.
É imensa a variedade de itens na loja e Pai Amaro de Xangô me explicou os que despertaram a minha curiosidade. Inicialmente perguntei sobre a venda de santos católicos e ele respondeu que são comprados pelos umbandistas, pois nesta religião São Jorge é Ogum, Nossa Senhora da Conceição é Oxum e São João Batista Xangô. Chamaram a minha atenção pequenos jarros de cerâmica. São para as oferendas. O jarro que tem duas asas é oferenda para um Orixá feminino, como Oxum. Logo, o jarro sem asas é para um Orixá masculino. Os colares de miçangas são guias e cada um corresponde a um Orixá, sendo igualmente mandalas de proteção. Existe na loja um conjunto de louças de inúmeras peças com estampas de cores variadas, assim como de peças todas brancas. São usadas na iniciação do Iaô no candomblé. De acordo com a ancestralidade pode ser para Iemanjá, Iansã etc. A de peça branca é oferenda quando a ancestralidade é Oxalá.
Minha curiosidade foi imensa em relação a estátua de um homem elegante, uma espécie de dândi. Trata-se do Zé Pilintra, uma entidade de luz originária do Catimbó, surgido no Nordeste do Brasil. É representado trajando terno de linho na cor branca, sapatos bicolor, gravata vermelha e chapéu panamá de fita vermelha ou preta, parecendo o típico malandro carioca. O Zé Pilintra tem importância para os praticantes de umbanda, comumente incorporado em terreiros. Indaguei sobre as imagens de indígenas., assim como os umbandistas. Não existe o diabo em nenhuma destas crenças, mas tão somente o “babaegum”, espírito que não recebeu a luz e fica infernizando a vida de algumas pessoas.
Havia muitos vasos de cerâmica para as oferendas. Pede-se caminho aberto, paz e saúde, esclareceu Pai Amaro de Xangô. Existe uma explicação dada pela historiadora Mary Karash de o porquê a oferenda é feita numa encruzilhada. Tem origem no momento da venda do escravo. Desembarcados dos navios negreiros e depositados em armazéns, os escravizados defrontavam-se com uma das transições mais decisivas de suas vidas, da qual não tinham controle algum: sua venda no Valongo, no Rio de Janeiro, o maior mercado de escravos do país. Ali estavam numa encruzilhada de seus destinos. Para que direção seriam levados, que caminho iriam seguir, quem seria o seu senhor, este era o dilema. Por isto, para pedir um bom ano novo, no último dia do ano que se encerra, a oferenda é feita numa encruzilhada. Nesta entrevista, uma frase de Pai Amaro de Xangô me marcou: “É um mundo desconhecido.”
Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora