Guloseimas, cardápio e receitas no Brasil Império
Inauguro nesta coluna a série Comer História com artigos publicados periodicamente sobre os hábitos alimentares no passado. Com a queda de Napoleão, em 1814, a Corte portuguesa instalada no Brasil reaproxima-se da França e um melhor relacionamento comercial incentivou as importações de produtos de luxo para o Brasil. A culinária se europeizou com a presença significativa de estrangeiros, notadamente de ingleses e franceses no Rio de Janeiro. No Segundo Reinado floresceu o número de confeitarias refinadas, dirigidas por pâtissiers franceses e italianos, especialistas na preparação de doces e salgadinhos sofisticados. Esses estabelecimentos combinavam o sabor dos tradicionais doces portugueses com as novidades oriundas da França e da Itália. Nas prateleiras das confeitarias viam-se éclairs de chocolate e creme, nougats, marrons-glacês, gâteau Saint-Honoré, vacherin, babá ao rum, petits fours, bombons, madeleines e brioches em sintonia com bons-bocados, mães-bentas, manuês, pastéis de nata e casadinhos. Eram igualmente servidos petiscos inigualáveis, como empadas com recheios especiais de peixe, marisco, frango, camarão e peru, além de croquetes, pastéis, casadinhos de camarão e pastelões.
As comidas de rua foram registradas pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret, que pintou quitandeiras servindo angu com moídos de carne de vaca, coração, fígado, bofe, língua e moela. A este prato acrescentavam folhas de nabo, pimentão verde ou amarelo, salsa, cebola, louro e tomates; tudo reduzido à consistência de um molho de boa liga. As negras de ganho vendiam manuês, sonhos, pão de ló e café. Debret Igualmente nos revela a refeição de uma família abastada em “um jantar brasileiro”, pintado em 1827. No século 19 as refeições tinham um horário diferente dos dias atuais e o que Debret chama de jantar corresponde ao nosso almoço de hoje. O almoço era às 10h, o jantar geralmente às 2h da tarde, no meio da tarde uma merenda e uma ceia antes de dormir. Nos dias atuais a pintura provoca repulsa, pois, a senhora durante a refeição alimenta os filhos de escravos como animais. O curioso nesta mesa é uma gigantesca pilha de couves sobre uma travessa.
Nas cerimônias e soirées das elites da época, o menu era forçosamente a culinária francesa. No casamento de Alice Clemente Pinto com Rodolpho Epifânio de Sousa Dantas, neta do primeiro Barão de Nova Friburgo, realizado em 27 de outubro de 1883, o banquete foi realizado no palacete Nova Friburgo (hoje Museu da República) onde foi servido o seguinte menu: Beurre, radis, anchois, saumon et olives, oeufs brouillés aux truffes, poisin tune tanque (sic) de crevettes Pompadour, cotelettes d’agneau Dusmesml, suprème de volaille petis-pois, galantine et faisans à la votière, jambon d’York décoré, pâté de Pithiviers volant, mayonnaise de hornards(sic) à la gelée, dindonneau truffé, salade russe, rost beef, fonds d’artichauts à la moëlle, croutes à la Richelieu, gelée au marasquin, fromage panaché, nougät gateau de noce, Château des Chantelles. Boissons, Madère, Château d’Yquem, Lur Saluce, Brown Cantenac, Chambertin, Château Laffitte, Louis Roederer glacé, Veuve Clicquot, Porto vieux, Constance e Tokay.
Você já imaginou comer bacalhau adicionando quiabo, jiló, couve, banana da terra, amendoim torrado e pimenta cumari? Pois eram estes os ingredientes utilizados por nossos antepassados. Pesquisei receitas de bacalhau no livro “Cozinheiro Imperial”, de autoria de Constança Oliva de Lima, publicado em 1852, pela editora Eduardo & Henrique Laemmert, no Rio de Janeiro. Adaptei para a escrita atual as receitas, mas as expressões e medidas mantive originais. Na receita de “Bacalhau cozido a brasileira e portuguesa”, Constança de Lima explica que “o bacalhau cozido à brasileira leva quiabos, cebolas fendidas, maxixes, jilós e bananas da terra quase maduras; e come-se com um molho de azeite, vinagre e pimenta cumari. O bacalhau cozido à portuguesa leva batatas, cebolas fendidas e um molho de couves, que servem também para atrair o sal. Come-se com um molho de azeite, vinagre, alhos e pimenta do reino e alguns deitam no molho cebolas cruas picadas miudamente.”
No Bacalhau ensopado com quiabos a receita é a seguinte: “Refoguem-se numa panela vidrada com azeite doce, cebolas, salsa, pimenta do reino e cumari, alhos e louro, e depois ajuntes-lhes o bacalhau já cozido à parte e desfeito em lascas; mexa-se para tomar gosto, e logo após deite-lhes uma porção de quiabos (quingombôs) cortados em rodelas muito finas; mexa-se tudo, e ajuntem-lhe pouca água. Coza-se, e quando estiver a ponto, podem deitar-lhe quanto queiram de azeite de dendê”.
E que tal um vatapá de bacalhau? Vamos a receita: “Depois de molhado, afervente-se o bacalhau com postas, alimpe-se e asse-se um pouco; depois ponha-se a cozer em uma panela e tempere-se com tomates, cebolas, pimenta cumari e todos os temperos de que usamos e açafrão, menos vinagre, e por último azeite de dendê. Podem-se ajuntar alguns quiabos cortados muito miudamente. Depois de tudo bem cozido, engrossa-se o caldo com farinha de mandioca peneirada e misturada com a farinha de amendoim torrado, na quantidade de dois vinténs. Depois de pronto come-se com massa de farinha de arroz, de milho ou de mandioca. A pimenta de cumari deita-se-lhe à vontade de cada um.” De fato, é uma “delícia” este olhar sobre o passado para conhecermos os hábitos alimentares dos que nos precederam.
Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora