Mente sã em corpo são: Jogos Esportivos do Colégio Anchieta
Na segunda metade do século 19, os exercícios saem da esfera militar e alcançam as escolas, notadamente os internatos onde estudavam os filhos das elites. Os médicos higienistas recomendavam exercícios ginásticos para o desenvolvimento físico dos alunos, tornando-os mais fortes e robustos, e assim poderem realizar a bem conhecida máxima: Mens sana in corpore sano. Para melhor aproveitamento nos estudos em suas escolas, os Jesuítas intercalavam recreações, passeios campestres, exercícios e jogos variados, dos quais nenhum aluno poderia ser dispensado, salvo grave motivo reconhecido pelo reitor do colégio. Em internatos como o colégio Anchieta em Nova Friburgo, os padres Jesuítas proporcionavam exercícios ginásticos e jogos, que tinham a função de formação física e moral dos alunos, amenizando outrossim a austeridade dos estudos e da rotina religiosa.
O colégio Anchieta foi fundado no salubre município de Nova Friburgo no ano de 1886, se estabelecendo na sede da antiga fazenda do Morro Queimado, conhecida como château. Na mesma colina em que funcionava o colégio, os Jesuítas foram construindo ao longo de oito anos um complexo de prédios em estilo neo clássico e ocupando-o na medida em que finalizavam as alas. Em 1922, a reitoria comunicou que deixaria de receber alunos leigos e passaria a se dedicar somente a formação de estudantes religiosos e futuros Jesuítas. No entanto em 1942 passaram a aceitar novamente alunos leigos, mas em regime de externato. Neste artigo a análise das práticas esportivas será na primeira fase, de 1886 a 1922, quando era um colégio-internato.
Como dito antes, para os Jesuítas os exercícios ginásticos e jogos, além do desenvolvimento físico que proporcionavam ao corpo, fortalecendo-o, eram necessários ao espírito dos colegiais. Os internos não poderiam consagrar, com prejuízo de sua inteligência e saúde, horas seguidas dentro de uma sala de aula. Por isto promoviam e incutiam no ânimo dos internos o gosto pelos exercícios e jogos para aliviarem as lidas contínuas dos estudos. Nada mais apropriado do que depois das aulas e antes das tarefas na sala de estudos praticarem jogos recreativos no recreio. No estatuto vinha assinalado que o objetivo do colégio Anchieta era a educação literária, científica, física, cívica e em particular esmerada formação religiosa. Logo, os exercícios ginásticos e jogos tinham significativa importância. Neste sentido, os alunos estariam aptos para conquistar o seu lugar na sociedade levando a mens sana in corpore sano. O Padre Lombardi em sua despedida do colégio Anchieta fez votos pelo progresso tanto intelectual como físico dos alunos.
Os internos eram separados em maiores, médios e pequenos e cada divisão tinha o seu próprio recreio, que eram imensos. Como no Anchieta a maioria dos padres era de origem italiana o jogo de malhas, típico deste país foi introduzido nos primeiros anos do colégio. Os exercícios ginásticos eram colocados à prova nos jogos colegiais, uma olimpíada interna que ocorria geralmente na festa de aniversário do Padre Reitor, do Padre Ministro, na visita de um eclesiástico da cúpula da Igreja ou nas festas cívicas, a exemplo da comemoração da Independência do Brasil. Normalmente estes jogos tinham a assistência de autoridades convidadas e do público externo. Nas competições olímpicas havia as modalidades de corrida de velocidade de 100m, de obstáculos de 500m, pulos com impulso(comprimento e altura), pulos com trampolim (comprimento e altura), pulos de pés juntos(comprimento e altura), barra fixa(flexões), barrinha, lançamento de peso e corrida de resistência até o valo do Morro Queimado.
Ocorriam ainda disputas como corrida com velas acesas, corrida de um pé ou de pé coxinho de 50m, corrida em saco de 50m, corrida dos cegos de 50m, corrida de pés amarrados de 50m e corrida de costas de 50m. Localizei ainda modalidades de competição como bola ao campo(que não é o futebol), tiro ao alvo(distância de 10m e 20m), tostão n’água, comer linha, bette e shoots. Havia o jogo de quebrar botijas que balançavam ao sopro da brisa penduradas em uma trave. O esportista com os olhos vendados portava em uma das mãos um varapau tentando acertá-las. Ao final dos jogos olímpicos os vitoriosos recebiam do reitor além de medalhas, um diploma de mérito esportivo. No Aurora Colegial de 22 de setembro de 1906, periódico dos alunos do colégio Anchieta, foi descrito os Jogos da Independência que contou com a presença do jurista Rui Barbosa e Elias Antônio de Moraes, o barão das Duas Barras. Houve corridas com obstáculos formados por barricas erguidas a boa altura e uma rede pregada ao chão pelo qual deviam passar os competidores. Seguiram-se corridas simples, de pernas de pau, sacos, tuneis, quebra potes, pulos a distância, altura e luta de corda.
Nos jogos escolares de 1907 os anchietanos disputaram com os alunos do colégio Jesuíta Santo Inácio, do Rio de Janeiro. Competiram no jogo de quebra potes e corridas com obstáculos. Os disputantes tinham que vencer as dificuldades que se deparavam no caminho como barricas, pular por cima de bancos, atravessar rodelas cobertas de papel e passar por sacos fixados ao chão e bem enrolados, que embaraçavam os corredores menos adestrados. Após os jogos fizeram um piquenique no parque São Clemente com soberbas iguarias como linguiça, uvas, queijo, biscoitos, balas, etc. em que “os apetites despertados pelos exercícios se desforraram à farta no folguedo campestre”. Já nas olimpíadas anchietanas de 1922 foram disputadas as modalidades de corrida rasa de 100m, corrida com barreiras de 150m, corrida de resistência, pulo de extensão com corrida de impulso, pulo de extensão sem impulso, pulo de altura com impulso, pulo de altura sem impulso, pulo de altura com vara, arremesso do disco, lançamento do dardo, partida de foot-ball e luta de corda.
Havia uma profusão de jogos trazidos dos colégios da Companhia de Jesus na Europa. O padre francês Rubillon realizou ensaios de jogos como o bette ou criqué e o diabolo, tornando-se os jogos da moda durante determinado período. O diabolo tem origem na China e se espalhou pela França. Rubillon sempre trazia novidades com o intuito de dar estímulo aos jogos, de quem era incansável propagandista. Os jogos eram variados como “batalha da bola”, “partida de tamborins”, “partida de quadrado”, “chicote queimado”, jogo da peteca, pião e ping-pong. Os alunos criavam um clube para cada modalidade esportiva como o “Anchieta Tamborins Club” com associados, uniformes distintivos e eleição da diretoria. Com a introdução do ping pong se criou um grêmio. Cada jogo trazia novo entusiasmo entre os internos.
De todos os jogos o favorito era futebol, introduzido de forma pioneira no colégio Anchieta e visto como um esporte que desenvolvia as forças físicas. Os ex alunos anos mais tarde fundariam os primeiros clubes profissionais deste esporte em Nova Friburgo. O ex aluno José Antônio Marques Braga Sobrinho em “Reminiscências dos primeiros tempos do colégio Anchieta de Nova Friburgo”, nos informa que o foot-ball até então era desconhecido no Brasil. O futebol foi noticiado pela primeira vez no Aurora Colegial de 10 agosto de 1905, sendo apresentado pela Divisão dos maiores com muito entusiasmo. Em um artigo descreveram as regras deste esporte informando ser proibido dar caneladas, passar rasteiras ou armar cambapés aos adversários. O futebol tornou-se um jogo tão favorito que ganhou a coluna Sport no Aurora Colegial, com comentários detalhados das partidas descrevendo o desempenho dos jogadores e o resultado da liça.
Desde o final da década de 1860 começaram a chegar ao Brasil as primeiras bicicletas, conhecidas como velocípedes. A bicicleta parece ter sido introduzida no Anchieta em 1912, e causou imensa alegria entre os internos. Além de ser um divertimento, o ciclismo era considerado um exercício físico de primeira ordem para robustecer o corpo. Os internos passeavam pelos seus respectivos recreios e o Padre Reitor chegou a contratar um operador da Nacional Film para “apanhar” diversos aspectos de uma corrida de bicicletas dos alunos levada a efeito na praça 15 de Novembro (atual Getúlio Vargas). Nesta praça havia o Velódromo Friburguense destinado aos exercícios e competições de bicicleta e frequentado pelos sócios do Bicyclette Club Friburguense.
Em 1916 introduziu-se o stock-ball e tudo indica ser o cricket, com vocabulários como matches, keeper, goal, équipe e shoot. No mesmo ano há o registro do tênis utilizando bolas da marca olympic e fundou-se o Club de Lawnn-Tennis, com campo próprio. Em “Anchieta do meu tempo”, conforme o memorialista Octávio Barbosa da Silva, aluno no período de 1919-1922, “Durante as horas de recreio, sob a vigilância de um Padre ou Irmão que possuía o título de prefeito, os jogos preferidos entre os alunos eram o futebol, a malha, a barra-bandeira, existindo no ground dos maiores um excelente rink de patinação em cimento.” O rink de patinação foi inaugurado em 21 de maio de 1922, último ano do internato. Não satisfeitos em importar jogos, o Padre Prefeito da Divisão dos médios Luiz de Poletti fabricou carrinhos de madeira conduzidos por velozes corredores. Na competição um aluno tomava assento no carrinho e outro o conduzia.
Depois do futebol o barra-bandeira, jogo que remonta a Idade Média era muito praticado no recreio, nos intervalos das aulas e igualmente nas competições. Exigia muita destreza e agilidade do jogador. Havia ainda o “jogo de guerra”, na Europa designado de pugnaspiel, disputado apenas na Divisão dos pequenos. De um lado Roma e de outro Cartago. Numa admirável elasticidade as manobras consistiam em abaixarem-se, levantarem-se, contraírem-se, encolherem-se, escudarem-se, atacarem e defenderem-se. Bolas feitas de pano enchiam o espaço golpeando os escudos que tiniam numa agradável algazarra. Os soldadinhos confeccionavam as bolas com camisas, meias e ceroulas velhas que serviam de munição no combate. Na liça eram atiradas em média 500 bolas. Os “mortos” na batalha eram recolhidos no quartel dos inválidos. Ao toque de retirada acabavam-se as manobras.
O “jogo do rei” foi outra novidade cuja competição envolvia estratégia militar.
“…vão continuando com grande animação os campeonatos semanais[…].hoje começou um jogo a que se entrega entusiasticamente[…]é o chamado ‘jogo do rei’, um dos mais interessantes divertimentos. Eis em breves palavras o que consiste este jogo. É uma batalha, um assalto em que se enfrentam dois exércitos cada um composto de um rei, de um marechal, de um general e de um número igual de soldados dispostos por ordem de valentia e capacidade. Em cada campo há três torres e um cárcere. A primeira torre, assaz pequena é defendida pelo rei em pessoa. As outras duas pelo marechal e o general. O cárcere defendido por um ou dois carcereiros serve para guardar os prisioneiros e impedir a sua libertação. As duas torres do marechal e do general, uma vez tomada pelos inimigos e arreada a bandeira servirão de refúgio aos novos donos, para se retirarem em caso de perigo ou de sortida dos adversários.
Toda vitória consiste em tomar de assalto, pondo nela o pé, a torre do rei; tarefa bastante difícil pois o rei é formidavelmente defendido pelo seu estado maior(marechal e general) e pelos primeiros soldados, que geralmente ficam ao seu lado para rechaçar o inimigo, ao passo que o grosso do exército guiado e protegido pelos oficiais vai atacar o campo contrário, procurando em primeiro lugar apoderar-se das torres do marechal e do general. Os oficiais fazem frequentes correrias de um campo ao outro, quer para defender seu rei, quer para animar seus soldados e os levar ao assalto, quer para inutilizar soldados inimigos de muito valor. Cada um por sua vez vem a ser general, depois sobe a marechal e finalmente alcança a dignidade de rei.
Passado este período de efêmera grandeza, torna a ser último soldado e vai subindo assim pouco a pouco até ser de novo oficial e rei. É de notar que cada soldado pode prender somente os que lhe são inferiores em grau, assim o marechal vencedor não teme ninguém a não ser o rei vencido, o general vencedor só teme o marechal e o rei vencidos, e assim por diante. A primeira vez, o campo vencedor determina-se pela sorte, as outras vezes, conquista-se esta vantagem unicamente com a tomada da torre do rei. Proclamada e reconhecida a vitória são uns “hurrahs” e umas aclamações indescritíveis do lado dos vencedores; os vencidos pelo contrário retiram-se cabisbaixos; todos reformam sua linha de batalha e outra partida começa.” Aurora Colegial, 21 de julho de 1912.
Havia também a barra militar introduzida no colégio pelo instrutor do colégio, o sargento Eduardo Loureiro. Mas antes uma observação. Naquela época, por ordem do governo, os estabelecimentos de ensino secundários deveriam dar instrução de tiro de guerra e evoluções militares aos alunos a partir de 16 anos. O exército indicaria um instrutor militar para o colégio e forneceria armamento e munição. Por isto a existência de um instrutor militar no colégio. Havia dois modos de jogar a barra militar. O primeiro era andar pelo centro de linhas, como o trilho de um bonde fazendo mais de 5 zig-zags, pulando sobre bancos e passando por debaixo de cavaletes. O segundo era ir reto e pular por bancos altos.
O colégio Anchieta oferecia também esgrima como modalidade esportiva. Fazia parte das aulas livres, pagas separadamente, e cursadas apenas pelos alunos autorizados pelos pais. Os assaltos de esgrima, de florete e sabre eram exibidos em duplas em variados eventos no colégio. No Aurora Colegial de 16 de setembro de 1908, o aluno Henrique Magalhães, por ocasião dos jogos olímpicos disse em seu discurso “Eu vos saúdo por estes exercícios em que hauristes novas forças para o estudo, porque num corpo exercitado e ágil melhor se expande a alma!”
Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora