Os três acidentes aéreos no Pico do Caledônia
Nascido em 1963 no mais importante distrito agrícola de Nova Friburgo, Campo do Coelho (terceiro distrito), na cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro, Clébio Schuenck cresceu ouvindo muitas histórias de acidentes aéreos na Pedra do Caledônia onde residia. Ao mesmo tempo que ficava aterrorizado, igualmente se sentia encantado com os relatos dos vizinhos da propriedade agrícola de seu pai na Baixada de Salinas. Por ironia do destino, depois de ouvir tantos relatos de dois acidentes na Pedra do Caledônia, Schuenck seria no futuro protagonista do terceiro acidente, no mesmo local. Este artigo é baseado em uma entrevista que realizei com Clébio Schuenck, que relata as narrativas dos moradores desta região agrícola onde se localiza a Pedra do Caledônia. Os dois primeiros acidentes são baseados na história oral e o último na experiência vivida pelo próprio Schuenck. O Pico do Caledônia é um maciço de granito localizado no município de Nova Friburgo. Esta pedra eleva-se a 2.257m acima do nível do mar sendo o segundo ponto mais alto da Serra do Mar, cadeia de montanhas que vai de Santa Catarina ao Rio de Janeiro. Apenas o Pico Maior dos Três Picos, igualmente em Nova Friburgo é mais alto que o Caledônia.
O primeiro acidente aéreo na Pedra do Caledônia ocorreu em 1958. Na ocasião, Manoel Pereira Azevedo, mais conhecido como Manelinho em um sábado roçava no mês de junho um pasto com alguns companheiros, quando ouviram o barulho de um avião que voava muito baixo e de repente houve um silêncio. Comentaram entre si que o avião poderia ter batido no Pico do Caledônia. Três dias depois que ouviram o avião voando rasante, um homem com a roupa rasgada e muito debilitado bateu na porta da casa do senhor Manelinho pedindo ajuda. Segundo este homem, o avião que pilotava teve uma pane e foi forçado a fazer um pouso de emergência numa área da montanha. Junto com ele estavam duas mulheres, ainda vivas, mas muito enfraquecidas, que não puderam acompanhá-lo. Depois do piloto ter sido alimentado e feito um breve repouso, todos seguiram para o local indicado onde deixara as duas mulheres levando comida e café. Manelinho pediu ajuda ao seu irmão para o socorro.
O resgate ocorreu de forma satisfatória e o piloto e as duas mulheres se alimentaram e repousaram na residência do senhor Manelinho. Mesmo não aparentando fraturas ou cortes profundos foram levados para o hospital em um carro da prefeitura e depois seguiram viagem para o Rio de Janeiro. No entanto, com o frio intenso no mês de junho, chegando a fazer até menos 5°, por isto a região no passado era denominada de Terras Frias, os três contraíram grave pneumonia e vieram a óbito. A notícia abalou a todos que ajudaram no resgate. O avião não teve muitos danos materiais. O senhor Manelinho foi contratado para auxiliar os técnicos e as peças do avião foram desmontadas e levadas em um caminhão para o Rio de Janeiro. O avião era um monomotor de comando duplo, com capacidade para 4 passageiros.
O segundo acidente ocorreu em 4 de setembro de 1964. O avião Vickeris Viscounti 701C, matrícula PPSSR, da VASP decolou em uma sexta-feira, de Vitória rumo ao Rio de Janeiro. O avião havia se afastado da rota planejada sem o conhecimento da tripulação estando próximo a Nova Friburgo. Por volta das 19h colidiu contra a face leste da Pedra do Caledônia morrendo 5 tripulantes e 34 passageiros. Na manhã seguinte, moradores do terceiro distrito se dirigiram ao local do acidente pilhando quantias em dinheiro, joias, relógios, entre outros objetos de valor. A cena que encontraram foi de pedaços de corpos e vísceras espalhadas no local do acidente. Porém, mesmo diante do impacto da cena não se intimidaram em cortar dedos e braços inchados para levar consigo objetos de valor. Foi encontrado muito dinheiro, pois naquela época não se fazia muito o uso de cartão de crédito como nos dias atuais. Até mesmo brincadeira de mal gosto ocorreu entre os saqueadores. Um homem embrulhou o pênis de uma das vítimas em uma camisa e deu a uma mulher que pilhava entre os escombros dizendo que o objeto talvez lhe fosse útil.
Pedaços de avião ainda deslizavam após o acidente e quase matou um homem envolvido na pilhagem. Com a chegada das autoridades, a Polícia Militar ficou no final da trilha cercando e revistando os que desciam, para evitar a continuidade dos saques. Segundo relatos, os bombeiros subiam por um caminho e os saqueadores por outro. Um morador furtou joias, relógios, dinheiro e colocou debaixo do arreio do seu cavalo. Ao se deparar com o policiamento, antes mesmo da revista dos policiais confessou o saque e foi preso por tentativa de roubo. O caso pitoresco foi o de três saqueadores que recolheram uma enorme quantia de dinheiro. Porém, informados por outros saqueadores do policiamento na entrada da trilha colocaram o dinheiro em uma mala e esconderam embaixo de uma pedra. A seguir taparam-na com mato e terra para retirarem posteriormente. Dias depois, os três se dirigiram ao local e a mala com dinheiro tinha desaparecido. Conjeturaram que um dos saqueadores que lhes havia informado sobre o policiamento os havia enganado. No entanto, curiosamente um dos três comprou tempos depois um caminhão, um sítio, entre outros pertences. Não bastasse a tragédia de 39 mortes, um bombeiro faleceu no resgate. No final dos trabalhos quando descia escorregou e bateu com a cabeça em uma pedra.
A memória dos dois acidentes era passada de uma geração a outra, quando exatos vinte anos depois do último ocorreu um novo acidente aéreo na Pedra do Caledônia. Em 20 dezembro de 1984, uma quinta-feira, os produtores rurais festejavam a chegada da luz elétrica no terceiro distrito. Durante o festejo, por volta das 14h, populares ouviram o barulho de um avião que voava muito baixo. Alguns minutos depois um silêncio repentino, um déjà vu, ou seja, a impressão de que mais uma vez um avião poderia ter colidido com o Pico do Caledônia. No dia seguinte o noticiário confirmou que houvera realmente um acidente aéreo naquele local. O avião tinha saído na tarde de 20 de dezembro de 1984 do aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, com destino a Salvador na Bahia. O tempo estava muito nublado e dificultava o resgate da equipe PARASAR do Corpo de Bombeiros. Trata-se de uma equipe especializada em resgate em locais de difícil acesso. Ora se tinha a visão do local do acidente e ora não se via mais nada.
O avião se chocara contra a face oeste da Pedra do Caledônia e estava entre duas pedras rochosas do maciço. O avião era modelo Corisco, prefixo PTNJS 193, com capacidade para 4 passageiros, com lotação completa. A propriedade rural do pai de Clébio Schuenck se localizava a 6km do acidente. Uma moradora tinha visto uma pessoa balançar um pano branco e isto deixou Schuenck intrigado. Desde a infância ouvindo relatos de acidentes de avião na sua localidade e acontecia novamente outra tragédia. Schuenck resolveu então organizar uma expedição ao local do acidente convidando três amigos, que aceitaram acompanhá-lo. Partiram na noite de sábado, pois o Corpo de Bombeiros estava desde cedo no acesso a Pedra do Caledônia e não iria permitir a subida deles.
Levaram consigo uma lanterna, pinos, mosquetões e cordas de amarrar carga no caminhão, totalmente imprópria para o propósito pois a corda para escalar teria que ser mais grossa. Chegando ao local constataram que o acesso ao avião estava muito difícil, em um “buraco”, mas não recuaram. Amarraram a corda em uma árvore que suportasse o peso de todos eles. Clébio Schuenck foi o primeiro a descer fazendo uso da prática de rapel até o local dos destroços do avião. Em um determinado ponto da descida Schuenck sentiu muito medo, pois perdeu a visão dos amigos que estavam “dando corda” e também não via abaixo o avião, achando que calculara mal o local da descida. Naquele ponto acredita que estava mais ou menos a 1.820m de altura do nível do mar e podia avistar o Rio de Janeiro. Mas conseguiu chegar ao local onde o avião caíra e constatou que estavam todos mortos.
Schuenck viu partes de corpos espalhados junto às peças do avião, completamente despedaçado. Desceram a seguir os outros três. Clareando o dia, um helicóptero do Corpo de Bombeiros sobrevoava o local. Constatando a presença deles e fazendo uso de um megafone perguntaram se estavam dispostos a colaborar. O grupo sinalizou afirmativamente. Pendurado por um cabo de aço e com a ajuda de um guincho, um dos homens que estava no helicóptero desceu. Era o major Airo dos Santos que chegando ao local passou a dar ordens. Pediu inicialmente que juntassem os documentos das vítimas. Quando as sacolas foram jogadas do helicóptero, a pedido do major colocaram os corpos e partes deles dentro delas. A ordem era colocar os corpos em uma sacola de plástico transparente, depois dentro de uma verde do Exército, e por fim em uma de couro azul e laranja com argolas ao lado, que serviam para colocar os guinchos que vinham do helicóptero.
Foi localizado o altímetro que indicava que o avião bateu a uma altura de 1.850m. Um dos corpos apresentava menor rigor mortis e chegou-se à conclusão de que ele não morreu na hora do impacto. Teria sido o que acenou pedindo socorro? O resgate durou quase todo o dia, aproximadamente 12 horas. O major Airo dos Santos seguiu com o helicóptero e o grupo retornou para casa. Dois alpinistas do Rio de Janeiro chegaram ao local do acidente para realizar um trabalho técnico. Clébio Schuenck se sentiu orgulhoso ao sair na primeira página do jornal O Globo.
No ano de 2014, novas medições realizadas por Antônio Paulo Faria, doutor em geociências confirmou que os dois cumes mais altos da Serra do Mar são o Pico Maior e a Pedra do Caledônia, mas retificou ambos aumentando a altura. Constatou que a Pedra do Caledônia é 38m mais alta, de 2.219m passou para 2.257m. Os dados anteriores eram da década de 1960. Segundo Paulo Faria “as novas medições são úteis para atualização dos mapas cartográficos, para a aviação e a prática do montanhismo”. Teria sido o erro na medição do maciço do Caledônia a causa dos acidentes? Até os dias de hoje no terceiro distrito de Nova Friburgo, ainda se comenta os acidentes aéreos que impactaram os agricultores da região.
Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora