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Fria Friburgo. Lembranças de Drummond no Colégio Anchieta

O objetivo deste artigo não é fazer uma análise literária do capítulo “Fria Friburgo”, do livro “Esquecer para lembrar”, Boitempo III, de Carlos Drummond de Andrade. O que pretendo é explicar algumas passagens que Drummond menciona em seus poemas, no período que estudou no internato dos Jesuítas, para melhor compreensão. O que me habilita a contribuir com informações é a pesquisa que venho realizando nos arquivos do colégio Anchieta. Inicialmente uma breve explicação do educandário em que Drummond estudou no município de Nova Friburgo, localizado na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Os Jesuítas se instalaram no salubre município fluminense em 1886, estabelecendo o colégio-internato Anchieta. A princípio alugaram a antiga casa sede da fazenda do Morro Queimado onde anos antes fora o internato São Vicente de Paulo, coordenado pelo célebre barão de Tautphoeus, no qual estudara Joaquim Nabuco. Como o número de alunos aumentasse a cada ano, a Ordem dos Jesuítas adquiriu a propriedade iniciando a construção de um novo colégio em 1° de janeiro de 1902.

O grandioso prédio em estilo neoclássico, que substituiu o vetusto sobrado, foi totalmente concluído em 1910. Carlos Drummond de Andrade ingressou no colégio Anchieta em 1918, na Divisão dos maiores, no segundo ano. O colégio possuía três Divisões, dos maiores, médios e menores e cada uma tinha um Padre Prefeito, responsável pela rotina nos estudos, vigiar o recreio, coordenar os passeios, entre outras funções. O colégio Anchieta apenas aceitava alunos internos, mesmo domiciliados em Nova Friburgo, pois não admitia semi internos. O colégio-internato era o preferido pelas elites na educação de seus filhos, até aproximadamente meados do século vinte. Vamos a explicação dos poemas.

Casa sede da fazenda do Morro Queimado onde os Jesuítas se instalaram. Acervo colégio Anchieta
Casa sede da fazenda do Morro Queimado onde os Jesuítas se instalaram. Acervo colégio Anchieta

PRIMEIRO DIA

“Resumo do Brasil no pátio de areia fina. Sotaques e risos estranhos. Continente de almas a descobrir palmo a palmo, rosto a rosto, número a número, ferida a ferida. Mal nos conhecemos, a palavra-mistério na pergunta-sussurro é pedrada na testa: – Você gosta de foder?”

O estranhamento dos “sotaques” ocorria em razão do colégio Anchieta receber, desde a sua fundação, internos do norte ao sul do país, alguns sulistas, muitos nortistas, mas notadamente paulistas, mineiros e evidentemente fluminenses. Quando Drummond se refere a conhecer os alunos “número a número”, deve-se ao fato de ao ingressarem no internato receberem um número de matrícula sendo por ele chamados e raramente pelos nomes. Os próprios alunos se referiam entre si pelo número ou apelido.

SEGUNDO DIA

Sou anarquista. Declaro honestamente. […] A solução é a anarquia. Sou Anarquista. Nem de longe vocês captam o sublime anarquismo. Sou. Com muita honra. Mas vocês, que são? Vocês são uns carneiros de lã obediente. Zombam de mim. Me vaiam: Anarquista, a-nar-quis-tá, a-nar-quis-tá-tá! (Medo de mim, oculto em gozação?) O bicho mau, o monstro repelente conspurcando o jardim de Santo Inácio. Avançam. Topo a briga. Me estraçalho lutando contra todos. Furor mil. Morro ensanguentado. Não. Não mato algum, nem me tocam sequer. Negro e veloz, chegou a tempo o Padre, e me salva do massacre, porém não do apelido: o Anarquista.

No segundo dia de aula Drummond ganhou como todo novato um apelido, anarquista. Até os mestres eram alcunhados, a exemplo do Padre Lochou que recebeu o apelido de padre chuchu. Drummond não gostou do apelido e sabemos que, quanto mais se rejeita,  mais o apelido pega. O poeta quase entrou em confronto físico com os rapazes de sua Divisão, apartado pelo “negro e veloz” padre. O negro a que se refere era a cor do hábito dos Jesuítas.

TERCEIRO DIA

“Mamãe quero voltar imediatamente. Diz a papai que venha me buscar. Não fico aqui, mamãe, é impossível. Eu fujo ou não sei não, mas é tão duro este infinito espaço ultra fechado. Esta montanha aqui eu não entendo. Estas caras não são caras da gente. E faz um frio e tem jardins fantásticos, mas sem o monsenhor, o beijo, a crisandália que são nossos retratos de jardim. Da comida não queixo, é regular, mas falta a minha xícara, guardou para quando eu voltar? Ai Mamãe, minha Mãe, o travesseiro eu ensopei de lágrimas ardentes e se durmo é um sonhar de estar em casa que a sineta corta ao meio feito pão: hora de banho madrugadora de chuveiro gelado, todo mundo. Nunca tomei banho assim, sou infeliz longe de minhas coisas, meu chinelo, meu sono só meu, não nesta estepe de dormitório que parece um hospital. Mamãe, o dia passou, mas tão comprido que não acaba nunca de passar. Um ano à minha frente? Não aguento. Mas vou fazer o impossível. Me abençoe. E faz um frio…a caneta está gelada. Não te mando esta carta que um padre leria certamente e me põe de castigo uma semana(e nem tenho coragem de escrever). Esta carta é só pensada.”

Dormitório do Anchieta que Drummond descreveu como um hospital. Acervo colégio Anchieta
Dormitório do Anchieta que Drummond descreveu como um hospital. Acervo colégio Anchieta

No terceiro dia Drummond quis voltar para casa. Os primeiros meses no internato eram os mais difíceis, quando imperava a saudade do lar, mormente pelos novatos. Os internos chegavam nostálgicos porque se apartavam dos pais, com choramingas a todo momento. No internato havia hora certa para tudo e viviam sob constante vigilância, o que provocava verdadeira aversão em alguns alunos. Com o tempo, a camaradagem dos colegas mitigava a saudade da família e as comodidades do lar. As práticas esportivas, eventos musicais e teatrais contribuíam para a adaptação a nova rotina.

Em “sonhar de estar em casa que a sineta corta ao meio feito pão”, no colégio Anchieta o horário de levantar era as 5:30h no verão e 6h no inverno. Drummond vai se referir novamente a este desconforto no poema “O Som da Sineta” que achei desnecessário transcrevê-lo. No Anchieta, quando batia pela terceira e última vez o sino, o Padre Prefeito ainda encontrava alguns alunos com a camisola de dormir e escova de dentes à mão. Havia como castigo aos retardatários ficar na “coluna” em pé, por alguns minutos. Os internos deveriam ordenarem-se em filas na saída do dormitório. Drummond queixa-se do banho madrugador de chuveiro gelado. O banho frio seguido imediatamente de exercícios físicos era recomendado pelos médicos, quando o aluno gozasse de saúde perfeita. Quando se queixa que o dormitório “parece um hospital” se refere as camas enfileiradas em um imenso salão, sob a vigilância de um Irmão Coadjutor.

 O colégio Anchieta atendia a todas às exigências higiênicas para os internatos, a começar pelos imensos dormitórios dos alunos no terceiro andar, todos arejados por meio de gregas, que facilitavam a entrada do ar livre e ventilados por uma série de janelas com venezianas que se abriam para a belíssima mata ao fundo. Finalmente, refere-se a “Esta montanha aqui eu não entendo”. O colégio Anchieta foi construído em um outeiro, próximo a dois imensos morros que deram origem ao nome da fazenda Morro Queimado. O nome morro queimado advém de sua característica geológica formado por rochas graníticas de cor acinzentada, sem vegetação. Teria sido a falta de mata no morro que provocou um estranhamento em Drummond?

Esta montanha aqui eu não entendo, escreveu Drummond. Acervo colégio Anchieta
Esta montanha aqui eu não entendo, escreveu Drummond. Acervo colégio Anchieta

LIÇÃO DE POUPANÇA

“Todo aluno tem direito
ao dinheiro do bolsinho
para comprar gulodices
e outros gastos fantasistas.

Mas o bolso do uniforme
jamais viu esse dinheiro
fornecido pelos pais.
Fica na tesouraria.

Sexta-feira a gente faz
o pedido por escrito:
“Quero quatro bons-bocados
e um pote de brilhantina.”

Domingo no pátio a hora
de entrega das encomendas:
“Não se encontrou bom-bocado,
aqui estão quatro mães-bentas”

Quanto à brilhantina, excede
o limite do bolsinho
e as dimensões da vaidade.
Poupe mais o seu dinheiro.”

No poema “Lição de Poupança”, Drummond se refere ao “dinheiro do bolsinho”. Os padres solicitavam aos pais que no ato da matrícula deixassem sob sua administração uma quantia em dinheiro para despesas particulares dos alunos, “o bolsinho do aluno”, já que era proibido terem consigo qualquer valor. Este montante era usado, por exemplo, na compra de guloseimas. Em “O Doce” Drummond escreveu “A boca aberta para o doce já prelibando a gostosura, e o doce cai no chão de areia, droga! Olha em redor. Os outros viram. Logo aquele doce cobiçado a semana inteira, e pago do seu bolso!…”

COMEÇAR BEM O DIA

“A missa matinal, obrigação de fervor maquinal. Em fila religiosa penetramos na haendeliana atmosfera do órgão, no incenso do recinto. Cada um de nós pensa em outra coisa diferente de Deus. Ai, nosso Deus compulsório! Proibido olhar o fundo da capela onde rezam as moças de Friburgo, as inacessíveis, castelanárias moças friorentas de Friburgo. Alguma delas me vê, sabe que existo? Um dia notará que penso nela, sem que eu saiba sequer em qual eu penso? Se acaso, prosternado, eu virasse o pescoço e vislumbrasse entre rostos o rosto que me espera e ele me sorrisse,  a vida era de súbito radiante, o colégio era a Grécia, a Pérsia, o Não Narrável. Baixo, entanto, a cabeça, ouço a voz do oficiante, monocórdia. Convida-me a pastar arrependimento de faltas nem de longe cometidas,  obscuros crime em ser. Moça alguma verei no só relance de entrada e saída, em fila cega.”  

Os internos assistiam missa pela manhã, diariamente, em jejum. Por isto Drummond se queixa de “começar bem o dia”, sempre com missa, “obrigação de fervor maquinal”. Haendel e muitos outros clássicos eram tocados nas missas e festividades do colégio, que em ocasiões especiais tinham motetes e orquestra. Em o “Deus compulsório” pode estar se referindo ao excesso de religião na vida cotidiana do internato como confissões, ladainhas, catecismo, procissões, reunião das congregações, entre outros. Uma vez por ano observava-se o retiro espiritual por 3 dias seguidos. No estatuto do colégio Anchieta vinha assinalado que o seu objetivo era a educação literária, científica, física, cívica e em particular esmerada formação religiosa. Em “Proibido de olhar o fundo da capela”, nas missas realizadas na capela do colégio, esta queixa refere-se ao fato de que os alunos eram apartados do público. O contato extramuros era proibitivo e se restringia a visita mensal dos pais aos domingos, quando então eram autorizados a deixar o internato durante o dia.

Drummond queixa-se do excesso de religiosidade no internato. Acervo colégio Anchieta
Drummond queixa-se do excesso de religiosidade no internato. Acervo colégio Anchieta

A DECADÊNCIA DO OCIDENTE

“No ano de 18 plangem veteranos: Nosso jornalzinho não é mais aquele. Foi-se a academia de jovens talentos. Os restantes árcades jogam futebol. Agora, estilistas, só na arte do pé. Somem os poetas, vão-se os prosadores. Não há mais cultura e se depender dessa geração de racha-piões, que irá restar do nosso idioma e nossa tradição? Ah, nos velhos tempos isso aqui andava cheio dos Camões, dos Ruis, dos Bilacs e dos Castros Lopes.”

No poema “A decadência do Ocidente” Drummond lamenta o fim da Academia Anchieta. Esta academia objetivava o desenvolvimento intelectual, o cultivo das letras e o desenvolvimento da oratória dos alunos de literatura do V e VI ano ginasial. Os membros eram admitidos por concurso e tinha São Tomás de Aquino como patrono. O periódico interno Aurora Colegial, “nosso jornalzinho”, publicava as poesias, sonetos, quartetos, quadrinhas, sextinas setissílabas e contos dos alunos acadêmicos. A produção intelectual na academia era estimulada pela emulação com certames literários. No entanto, a Academia Anchieta teve vida efêmera.

Possivelmente não logrou êxito por demandar muito dos alunos a produção de textos literários, comprometendo os estudos regulares. Quando Drummond se queixa que “os restantes árcades jogam futebol. Agora, estilistas, só na arte do pé”, refere-se a uma imensa paixão entre os anchietanos, o futebol. Foram os Jesuítas que introduziram este esporte em Nova Friburgo, noticiado pela primeira vez no Aurora Colegial de 10 agosto de 1905. Os ex alunos do Anchieta, que dominavam a técnica e as regras do jogo ainda pouco conhecidas no Brasil, formaram o primeiro clube de futebol na cidade em 26 de abril de 1914, o Friburgo Football Club. A crítica de “geração de racha-piões” deve-se ao fato de que havia no recreio, o jogo de piões.  “No ano de 18” refere-se ao ano de 1918, sua admissão no Anchieta.

ESTREIA LITERÁRIA

“Desde antes de Homero a aurora de dedos róseos pousava todas as manhãs por obrigação. Não assim tão róseos. Nossa aurora particular baixa num vapor de frio do alto da serra, e mal nos vemos, errantes, no recreio, em meio a rolos de névoa. Outra aurora eu namoro: a Colegial. Quatro páginas. Quinzenal. 300 réis. Periódico da Divisão dos Maiores. Quero escrever, quero emitir clarões de astro-rei literário em suas edições. Dão-me, que esplendor, primeira página, primeira, soberbíssima coluna. É a glória, entre muros, mas a glória. Contemplo, extasiado, o meu próprio talento em letras públicas. Ler? Não leio não. Quero é sentir meu nome, com a notinha: Aluno do segundo ginasial. Já são quatro da tarde. Até agora ninguém veio gabar-me a nobre criação. Ninguém gastou 300 réis para me ler? Será que meu escrito não é lá uma peça tão sublime? Decido-me a encará-lo mais a fundo. Vou me ler a mim mesmo. Decepção. O padre-redator introduziu certas mimosas flores estilísticas no meu jardim de verbos e adjetivos. Aquilo não é meu. Antes assim, ninguém me admirar.”

O “vapor de frio do alto da serra, e mal nos vemos, errantes, no recreio, em meio a rolos de névoa”, deve-se ao clima frio e seco de Nova Friburgo, que produzia uma névoa nas primeiras horas da manhã, até que os raios de sol a dissipassem. Quando Drummond escreve “Outra aurora eu namoro: a Colegial”, trata-se do periódico Aurora Colegial, publicação quinzenal da Divisão dos alunos maiores, estendendo-se depois as outras Divisões, que atuavam como colaboradores. O primeiro número impresso do Aurora Colegial saiu em 25 de maio de 1905 e nele existem inúmeras crônicas de Drummond, que escrevia com assiduidade. O poeta se queixa que “O padre-redator introduziu certas mimosas flores estilísticas no meu jardim de verbos e adjetivos”. Os padres Fabrício Ceccaroni e Amando Lochu inicialmente foram os redatores-chefes e possivelmente adequavam os textos dos alunos a norma culta, realizando algumas intervenções. Além de circulação interna, o jornal era enviado as outras Casas da Ordem e aos pais dos alunos, que desta forma tomavam ciência da vida cotidiana no internato.

Sala de aula do colégio Anchieta. Acervo colégio Anchieta.
Sala de aula do colégio Anchieta. Acervo colégio Anchieta.

O RATO SEM RABO

Que vem fazer este ratão sem rabo no rancho dos Maiores, provocando tamanha bulha que derruba a mesa de ping pong em pelo jogo e entra o center-forward com bola e tudo no goal-post sem goalkeeper e arregaça o prefeito a negra túnica para correr atrás do bicho insólito e a disciplina se desfaz em farra? Que quer dizer esse rabão sem rato na ratoeira do pátio dos Médios despojada de queijo, senão que nos Médios ninguém sabe pegar de um rato mais que seu apêndice? A pau e pontapé vamos caçá-lo e, está claro, vivo devolvê-lo com os nossos comprimentos ao sítio de onde veio para que, unindo rabo e rato, aqueles frouxos saibam matar um rato por inteiro.”

Em “O rato sem rabo”, os alunos médios fizeram alguma traquinagem soltando um rato sem rabo no rancho dos maiores, de que fazia parte Drummond. Rancho era a parte coberta do recreio de cada uma das Divisões. Os internos gostavam de espionar o rancho alheio e fazer alguma travessura. Havia competitividade entre elas, que tinham recreios separados, a que o poeta se refere como “sítio”. Competiam nos jogos, na aquisição de  medalhas nos concursos de postos de honra e até mesmo na intensidade da fogueira nas festas de São Pedro e São João.

A linguagem utilizada por Drummond na entrada do rato no rancho, “entra o center-forward com bola e tudo no goal-post sem goalkeeper” era comum entre os alunos, já que o futebol é de origem inglesa. Somente quando este esporte se popularizou foi utilizado o vernáculo. No Aurora Colegial, na coluna Sport, nas descrições das partidas utilizavam palavras como kick off, dribling, trainning, shoot, sportmen, free-kick, kicka em goal, goal-kick, corner-kick, half-back, center half-back, full-back, off-side, penalty, players, penalty kick, center-half, center-forward, shoot in goal, kickar in goal, shootada,  shoot, scratch, dribblando, field, goal kick, players foot-ballers, rush, center half-back, corners, free-kick. As penalidades eram corners, hands, fouls, penalties, off-sides. O “prefeito a negra túnica” era o padre prefeito em seu hábito preto a que me referi anteriormente.

O colégio Anchieta introduziu o futebol em Nova Friburgo. Acervo colégio Anchieta
O colégio Anchieta introduziu o futebol em Nova Friburgo. Acervo colégio Anchieta

No poema “Cobrinha”, o poeta admira sua cor, “É uma cobra verde – reparamos, admirável cobrinha toda verde”. Como ao fundo do colégio havia uma imensa mata era comum aparecerem no pátio cobras, gatos-do-mato(jaguatiricas), coelhos, tatus, etc.

PAVÃO

“A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça o leque vertical do pavão com toda a sua pompa solitária no jardim. De que vale esse luxo, se está preso entre dois blocos do edifício? O pavão é, como nós, interno do colégio.”

A LEBRE

“Apareceu não sei como. Queria por toda lei desaparecer num relâmpago. Foi encurralada e é recolhida, orelhas em pânico, ao pátio dos pavões estupefatos. Lá está, infeliz, roendo o tempo. Eu faço o mesmo.”

Já em “Pavão” e a “Lebre”, Drummond demonstra que ainda não se adaptou de todo ao internato comparando-se aos animais, presos e infelizes.

MARCAS DE GADO NA ALMA

“Bicanca, Sapo Inchado, Caveira Elétrica, Pistola Dupla, Zé Macaco, Apara Aí, Quisira, Marreco, Massa Bruta…Ainda bem que o apelido de Anarquista tem certa dignidade assustadora. Isso consola?”

Como dito antes, quase todos os alunos tinham um apelido. O Sapo Inchado era balofo e desengonçado até no andar; o Caveira Elétrica uma criatura sumida, nervosa como uma pilha; O Pistola Dupla era um tipo magro, alto e curvado; o Zé Macaco era peludo como um macaco; o Marreco porque falava fanhoso; o Massa Bruta, um gaúcho entroncado, jogador bruto de futebol; o Tucano porque possuía um nariz de palmo e meio. Estas descrições retirei das memórias de um colega de turma e amigo de Drummond, Octávio Barbosa da Silva, reunidas no livreto “Anchieta do meu tempo”. Segundo Octávio, o colégio Anchieta era um vasto celeiro de “bichos, trastes e cousas”. O apelido pegava mesmo, feito visgo, para imenso desespero do colega visado. Octávio escreveu que o melhor era não dar importância e alcunhar os outros: “…não fazíamos isto por maldade, para humilhar as pessoas visadas e, sim, por hábito.” Os apelidos surgiam em razão de características físicas ou eram originários de determinado situação. Vou explicar por que dois internos mencionados por Drummond receberam os apelidos “Apara Aí” e “Quisira”. O apelido “Apara Aí” foi dado a Dagoberto Mota, por causa de uma friburguense chamada Dulcinéia.

O interno Dagoberto flertava com a mocinha em suas habituais saídas com os pais, uma vez por mês. O pai de Dulcinéia era de família modesta, possuía uma cocheira e Dagoberto parecia se envergonhar desta situação. Em certo dia, ao desfilar com o batalhão colegial no centro da cidade, Dagoberto não olhou para o lado quando passou defronte a casa da enamorada mocinha. Dulcinéia, na janela, ficou aflita pela indiferença de seu adorado Dagoberto. Tentou chamar a sua atenção, mas o rapaz nem a olhava pelo rabo do olho. A mocinha saiu de casa e tentando alcançar o batalhão, a plenos pulmões gritou para que todos a ouvissem: – Apára aí, apára aí”! O erro no vocabulário de Dulcinéia passou a ser o apelido de Dagoberto.

Já o apelido de “Quisira” foi ganho por Orlandino Augusto Bacelar, um tipo mirrado e acanhado, filho do governador do Estado do Amazonas. Com a anunciada vinda do governador ao Anchieta para um evento festivo, os padres em homenagem ao ilustre visitante resolveram designar o tímido Orlandino como orador. O rapaz estudava o seu discurso com afinco, tarefa a que se entregou de corpo e alma. Passava horas a declamar falando às paredes, com gestos largos e teatrais de verdadeiro tribuno. Sua voz era ouvida até nos corredores: “Meus senhores: Eu quisera neste instante solene” e por aí adiante. No dia da festa, porém, o improvisado orador amanheceu nervoso, após uma noite mal dormida, se dirigindo quase arrastado para o teatro. Tremia como varas verdes.

No momento do discurso, uma chuva de palmas o acolheu e a manifestação ruidosa, longe de animá-lo, fê-lo mais acanhado. Veio após um silêncio profundo de expectativa. Orlandino lançou pelo mar de cabeças um olhar de carneiro quando é levado ao suplício. Na primeira fila, de casaca, avistara o pai cheio de orgulho pelo gênio que brotava na família. E o velho governador sorria satisfeito para as outras pessoas ao seu lado. Agora, com seus próprios olhos, veriam que no Amazonas não existiam somente jiboias e índios. Finalmente Orlandino abriu o maço das laudas da vibrante falação. Um pigarro fez-se ouvir e a seguir ecoou em voz alta um gaguejo que a todos surpreendeu: “Meus senhores: Eu Quizira…” Foi um desastre o discurso. Daí por diante o fracassado Orlandino passou a ser conhecido pelo apelido de “Quizira”, vulgo que o acompanhou durante todo o tempo de internato no Anchieta. Esta informações foram retiradas das memórias de Octávio Barbosa da Silva.

LORENA

“Lorena, contemplado com malícia, deixa-se estar, languidamente efebo. Bailam, sob a atração de luz ambígua, em seu redor, mutucas de desejo. E Lorena sorri, sua cabeça responde não aos gestos insistentes. Que matéria excitante para o arpejo noturno, antes-depois da penitência! Dormir sonham os Grandes com Lorena, mas onde? quando? se este ano letivo dura uma eternidade, pelo menos, e depois vem o tempo, o tempo livre de viajar na coxa das mulheres, e Lorena se esgarça na lembrança?”

Em “Lorena”, “os Grandes” a que se refere Drummond são os colegas de sua Divisão, como dito antes. Este poema é realmente enigmático e repleto de simbolismo.

A BANDA GUERREIRA

“Maestro Azevedo, em hora de inspiração, compõe a marcha de continência que a banda executa com bravura dócil. Vêm depois Salut au Drapeau, de Van Gael, Per la Bandiera, de Lamberti. Sem esquecer, meu Deus, a Canção do Soldado que nos acompanha até no passeio geral, espontânea, sem banda, imperiosa, no garganteio, no assobio. As bandas! Para isto existem elas e também para dispensar de aula os músicos na hora de ensaiar. Seu eu soubesse tocar alguma coisa, no mínimo instrumento (ao menos fingir que…) Nada, rendosamente nada. Tenho que marchar, canhestro, em continência.”

A referência as músicas Salut au Drapeau e Per la Bandiera deve-se ao fato do patriotismo ser extremamente estimulado pelos Jesuítas entre os internos. No Dia da Independência e no Dia da Bandeira ocorriam pomposas cerimônias internas e desfiles do batalhão colegial pela cidade. Drummond destaca ainda a canção do soldado “que nos acompanha até no passeio geral, espontânea, sem banda, imperiosa, no garganteio, no assobio”. Desde a fundação do colégio os internos  praticavam exercícios militares, além de atividades esportivas. Logo, era natural que o hino do exército fosse uma das canções favoritas. Os exercícios militares eram uma prática comum nos internatos no Segundo Império e na Primeira República. A “Banda Guerreira” a que se refere era a Banda Colegial, como era denominada, que tocava tanto nas cerimônias religiosas como nas atividades mundanas.

Os anchietanos costumavam sair formados em batalhões pelas ruas da cidade, fardados de branco, com a Banda Colegial a frente tocando peças musicais. Drummond quando escreveu “As bandas! Para isto existem elas e também para dispensar de aula os músicos na hora de ensaiar” se referia ao seu colega de peraltice, Octávio Barbosa da Silva, que já me referi anteriormente. Octávio escolheu o saxofone para ser admitido na banda e cabular algumas aulas, escrevendo: “…A banda de música abrilhantava as nossas festas, paradas e piqueniques, puxando os alunos – fardados e de polainas brancas – pelas ruas movimentadas de Friburgo. Era o conjunto musical privilégio dos alunos folgados e, daí, o meu grande desejo de ser músico para fugir das aulas, durante os ensaios. Escolhi um saxofone, mas, um dia, um sopro por mim dado, a bochechas largas, num dos corredores longos e silenciosos, fora de tempo e horas, e lugar, custou-me a expulsão da euterpe e um robusto pontapé do zeloso Padre Leme, no final da espinha. Foram-se – desde este instante dramático – os castelos por mim formados e as gostosuras dos bombons distribuídos após as tocadas nos ensaios.”

A banda guerreira mencionada por Drummond. Acervo colégio Anchieta
A banda guerreira mencionada por Drummond. Acervo colégio Anchieta

ORQUESTRA

“Strutt e Mancini, os dois maestros, me levam para o outro lado da música. O cisne de Saint-Saens é um lírio no lago do violino. Grieg ressoa em primavera. Manon, Massenet, minueto mais a sonata de Corelli, a Berceuse de Weber… e já bêbados de celeste piano e de sublimes cordas, ouvimos, cochilando, o Noturno de Chopin e o noturno de Strutt pela mesma orquestra, sob a mesma chuva estrelada de palmas das famílias presentes.”

Além da Banda Colegial havia a orquestra, no qual Drummond menciona os maestros Strutt e Mancini. A orquestra do Anchieta era composta pelos alunos e se apresentava em missas, colações de grau, nas representações teatrais, nas sessões cinematográficas, quando o cinema era mudo, entre outros eventos. Os italianos Arthur Strutt e Higino Mancini foram professores de música e maestros da orquestra composta de 52 arcos, 45 violinos, 3 violetas, 3 violoncelos, acrescidos de contrabaixos, flautas, clarinetes, fagotes e piano. O gênero musical que predominava eram as composições clássicas, incluindo ainda a mazurca e a tarantela.

ARTISTAS ADOLESCENTES

“O piano de Mário, o violoncelo de Luís Eduardo, o violino de Clibas, quem, entre   Grandes, Médios e Menores, suplantará? O piano, talvez, de Luís Cintra? O violoncelo de Henrique? O violino de Vítor Saraiva? Alguém, ainda, que vai nascer? Empate. Empate. Empate. O jeito é fazer com que toquem sempre aos pares, imbatíveis.”

A música no internato sensibilizou o poeta que menciona em “Artistas Adolescentes” alguns alunos que integravam a orquestra. Além do curso regular, o Anchieta oferecia cursos livres de música de vários instrumentos, grego, italiano, desenho linear, de ornato, de figura, pintura em aquarela e à óleo, esgrima, taquigrafia, entre outros.

SESSÃO DE CINEMA

“Não gostei do Martírio de São Sebastião. Pouco realista. Se caprichassem um tanto mais?… Prefeito mil vezes Max Linder Asmático. Ah, que não tarde a vir do Rio o anunciado Catástrofe Justiceira. Deve ser formidável. Repito baixinho: Catástrofe Justiceira. Catástrofe. Que pensamento diabólico se insinua no gozo destas sílabas? Até agora só tivemos coisas como O Berço Vazio, O Pequeno Proletário, Visita ao Jardim Zoológico de Paris. Não me interessam documentários insípidos. 

Quero uma boa catástrofe bem proparoxítona, mesmo não justiceira. Mesmo injusta. Será que na sessão do mês que vem terei este prazer?”

Em “Sessão de Cinema” Drummond faz referência aos filmes exibidos no teatro do colégio. Para maior comodidade dos alunos, que antes assistiam filmes no teatro D. Eugênia foi inaugurado no colégio o cinematógrafo, em 17 de outubro 1910. Quando o cinema era mudo, a sessão era denominada de cine-musical porque durante a exibição das “fitas” se apresentava a orquestra dos alunos ou dos professores. Os internos, em média assistiam a 12 fitas nas sessões, provavelmente curtas-metragens. Como o poeta insiste na exibição de Catástrofe Justiceira me parece ser uma crítica as fitas de documentários insípidos e temas religiosos na programação.

Ano de 1918. Teatro onde Drummond assistia as sessões de cinema. Acervo colégio Anchieta
Ano de 1918. Teatro onde Drummond assistia as sessões de cinema. Acervo colégio Anchieta

VERSO PROIBIDO

“Há os que assobiam Meu Boi Morreu, os que cantarolam Luar do Sertão. O 48, da Divisão do médios, embala o pensamento repetindo, Santo Inácio de Loiola, fundador desta gaiola. Vai distraído pelo pátio. Escutam-no, levam-no à cafua. Em vão tenta explicar que o verso não é seu, é de todo mundo, é de ninguém.

Fica em solidão o tempo necessário para aprender, contrito, que com Santo Inácio não se brinca nesta gaiola.”

Como dito antes, os alunos se chamavam entre si pelo número, a exemplo do 48 citado por Drummond, ou pelo apelido. Os internos quando retornavam dos passeios escreviam no Aurora Colegial voltarem à gaiola. Eram meninos passarinhos que deixavam a vida livre e folgazã em chácaras nos arredores da cidade, nas fazendas ou em palacetes cercados por pomares e jardins, para se submeterem a uma rígida disciplina no internato. Um dos princípios que vigorava na pedagogia dos Jesuítas e aplicado no colégio Anchieta era de que o interno não deveria nunca ser entregue a si mesmo, nunca poderia estar só. Um vigilante seguia-o por toda a parte, na igreja, na sala de aula, no refeitório, no recreio e nos quartos, estando sempre presente, examinando tudo. Mas essa vigilância não tinha apenas a finalidade de prevenir os desvios de conduta. Permitia igualmente aos Jesuítas estudar os caracteres e hábitos, para conseguir descobrir o modo de direção que convinha empregar para com cada aluno. Em outras palavras, essa atividade imediata e ininterrupta não devia apenas tornar a ação educativa mais contínua, mas também mais pessoal, melhor apropriada à personalidade de cada um.

Drummond se refere a “cafua”, um tipo de confinamento comum nos internatos. No livro “O Ateneu”, Raul Pompéia descreve a cafua no colégio-internato Abílio como um asilo das trevas e do soluço. A cafua geralmente era situada na parte inferior dos edifícios, sem janelas ou aberturas por onde penetre o ar, quase sempre muito úmidos e às vezes os encarcerados ficavam por dias privados de alimentos. No Colégio Anchieta baseado na  documentação que pesquisei, a cafua não era um ambiente insalubre e com privação de alimentação. No Diário do Colégio Anchieta existe a referência de um aluno estar “preso”, a exemplo do registro de 14 de setembro de 1912, em que “Três alunos dos grandes por insubordinação e falta de respeito ao prefeito vão presos no quartinho e ameaçados de expulsão.”

Ano de 1919, alunos do colégio Anchieta. Acervo colégio Anchieta
Ano de 1919, alunos do colégio Anchieta. Acervo colégio Anchieta

INVENTOR

“Entre Deus, que comanda, e guris, que obedecem, entre aulas a dar o mês inteiro, a vida inteira, a inteira eternidade (não cresça o Brasil afastado da ciência nem do Senhor acima de toda ciência) e sob a esperança do Paraíso, o padre português, no confessionário, antes que o pecador debulhe os seus pecados indaga: Quantas vezes mexeste no pirolito? Finda a obrigação, recolhe-se ao quarto ascético, dedica-se ao aperfeiçoamento de sua invenção, o ovoscópio, que identifica os ovos chocos e os separa dos bons, assim como Deus, no Juízo Final, vai separar as almas santas e as corruptas.”

Inicialmente em “não cresça o Brasil afastado da ciência nem do Senhor acima de toda ciência”, o poeta faz uma referência as palavras Fé e Ciência gravadas no frontispício do prédio do colégio Anchieta. Drummond foi indagado se mexia no “pirolito”. O onanismo era uma das práticas mais vigiadas nos internatos. A recomendação dos médicos higienistas era a constante ocupação dos internos através de atividades de recreação e exercícios ginásticos para combater o onanismo. Nas recreações recomendava-se que os alunos estivessem em constante movimento, sempre entretidos com atividades que despertassem o seu interesse.

Os exercícios físicos, atividades esportivas e de recreação eram muito aplicados no colégio Anchieta nos recreios das Divisões, que eram de amplas dimensões. Mais adiante em “O Dormitório”, Drummond vai se referir a “Luz inspetora de sonhos ilícitos. Joelho esticado, nenhuma saliência a transgredir a horizontal postura de sono puro.” Em repouso era-lhes proibido dobrar as pernas na cama, devendo permanecer sempre na horizontal. No dormitório iluminado com luz indireta ficava permanentemente um Irmão na vigilância. Quanto ao inventor, o poeta se refere ao Jesuíta português que inventou o ovoscópio, aparelho para selecionar os ovos chocos. Este padre era chamado às escondidas pelos alunos de “padre ovoscópio”.

Ano de 1918, exercícios ginásticos da Divisão dos médios. Acervo colégio Anchieta
Ano de 1918, exercícios ginásticos da Divisão dos médios. Acervo colégio Anchieta

ENIGMA

“Para merecer alto louvor, chegar talvez ao pés de Lídio, o sábio, que todas as medalhas arrebata e mais arrebatara se as houvera, terei de decifrar no jornalzinho enigmas como este: Quel est le célèbre empereur romain qui n’avait pas le nez pointu?[…] Desisto de encontrar a linha de um nariz, a marca de um perfil, a sorte de um aplauso. – Néron(nez rond) sorri, piscando o olho o Padre Rubillon ao avaliar a rasa superfície de minha rasa ignorância.”

Neste poema, a alusão de arrebatar medalhas, explicarei mais adiante, pois Drummond vai se referir novamente ao concurso que ocorria no colégio. No poema “Enigma” faz outra referência ao Aurora Colegial. Enigma era uma charada no qual se fazia uma indagação em um número do periódico, para ser respondido no próximo, muito comum nos jornais da época. O Padre Rubillon a que se refere era o prefeito da Divisão de Drummond e muito querido pelos alunos. Era francês e sempre trazia da Europa novidades no esporte e descobria novos lugares para os passeios dos alunos.

PASSEIO GERAL

“Uma vez por mês café da manhã com pão e manteiga.
Nesse pão de sempre a manteiga é signo de um dia feliz.
Uma vez por mês passeio geral.
Saímos aos três em fila informal, vigilante ao lado, no rumo sabido: Chácara do Braga.
Manhãzinha branca, fantasmas nevoentos saindo da bruma, passamos  na ponte do Rio Bengalas.
Latões de tutu, de linguiça e arroz vão na carrocinha.
Uma vez por mês é a liberdade ou seu faz-de-conta por algumas horas: água, mato, riso, canto, bola, gruta onde se penetra um de cada vez e só entra quem no peito escorraça outro candidato.
Lá dentro gritamos sob o teto baixo chamando o paciente mistério do eco. […]
Sentados no chão ou em tocos de árvore nosso piquenique é comer de deuses.
Come-se dobrado, come-se com fome de comer o raro prazer do ar livre.
Mas que é isso? Um pingo, outro pingo, pingos na minha comida
que já se derrete sob a chuva forte.
Depressa, correr e pedir abrigo na casa do Braga onde uma sanfona
acompanha lenta o chicote rápido da chuva nas folhas.
Uma vez por mês essa expectativa de um dia feliz ou dia frustrado.
Vigilante ao lado, em fila de três depois da estiada
A volta na lama do chão encharcado.
Todo um mês à frente
a passar na espera
dessa vez por mês.”

Para amenizar os labores escolares e a aspereza da severa disciplina ocorriam os passeios higiênicos. A finalidade era descansar o espírito, uma vez por mês, pelos arredores da cidade, geralmente em chácaras, lugares pitorescos ou em municípios próximos. Os passeios higiênicos bem como as práticas esportivas eram largamente recomendados aos colégios-internato nas teses de doutorado dos médicos higienistas. Aconselhavam que fossem longos e a pé, ao menos duas vezes por semana. Nos dias de passeio, pela manhã, antes de deixarem os umbrais do Anchieta, os internos assistiam à missa e depois seguiam para o refeitório.

 Nos dias comuns era pão seco e café puro. Nos dias de passeios a manteiga era acrescentada ao pão, que ainda vinha “mais espichado” e o leite adicionado a chávena de café. Logo, dia de passeio era dia de pão com manteiga, “nesse pão de sempre a manteiga é signo de um dia feliz”, celebrou Drummond. Acredito que esta prática tivrsse algum método pedagógico e a falta da manteiga nos dias ordinários não fosse por simples economia. As refeições e merendas no colégio Anchieta sempre foram elogiadas pelos alunos. No passeio geral a que se refere Drummond iam as três Divisões, “Saímos aos três em fila informal”. Quando se refere ao “rumo sabido” é porque o lugar mais visitado pelos anchietanos, desde a fundação do colégio era a chácara da família Marques Braga. José Antônio Marques Braga foi um dos primeiros alunos do colégio Anchieta ingressando em 1886, e seu irmão Augusto Marques Braga Junior, três anos depois. Em razão disto, as portas da chácara Braga sempre estiveram abertas aos Jesuítas. O chalé da chácara Braga data de 1821 e assim como boa parte das glebas que compõem a propriedade, localizada no bairro Chácara do Paraíso, encontra-se conservado até hoje.

Passeio higiênico do Anchieta preconizado pelos médicos para os internatos. Acervo colégio Anchieta
Passeio higiênico do Anchieta preconizado pelos médicos para os internatos. Acervo colégio Anchieta

Assim que chegavam era uma debandada geral e as três Divisões disputavam os melhores lugares da chácara, como a tomada de um território por um exército. A rotina era sempre a mesma. Depois de tomarem posse de seus territórios, esfalfados, estiravam-se sobre a relva, com os olhares voltados para o portão onde a cada instante parecia apontar a bendita carrocinha puxada por dois burricos, citado por Drummond, conduzida pelos Irmãos com o almoço, que naquela época era feito as 10h da manhã. Portadora das vitualhas a carrocinha era esperada com grande ansiedade pelos alunos, com um apetite maior do que o habitual em razão da longa caminhada.

Um Irmão apitava avisando que seria servido o tão desejado almoço e corria mais animado o vozerio. Terminada a benção, os alunos eram servidos por ordem numérica. Refluíam todos ao lugar indicado pelos padres prefeitos e comiam a refeição ao ar livre, esparsos pelo prado. O tutu e duas leitoas eram iguarias típicas nestes passeios. A gruta a que se refere Drummond era localizada nesta mesma chácara. Além das acirradas partidas de futebol um grupo gostava brincar em uma gruta situada no alto da encosta, como foi o caso do poeta. Na estrofe “Um pingo, outro pingo, pingos na minha comida”, deve-se ao fato de ser muito comum chover nos dias passeio, principalmente na volta. Ao chegarem ao colégio molhados tomavam um cálice de licor ou um copo de sangria preparado pelos Irmãos para evitar um resfriado. Em “Uma vez por mês essa expectativa de um dia feliz ou dia frustrado”, refere-se novamente a chuva, pois muitos passeios foram cancelados em razão da chuva frustrando a rapaziada. Como a refeição especial do passeio já estava preparada desde a véspera merendavam nos seus respectivos ranchos.

CAMPEONATO DE PIÃO

“Bota parafuso no bico do pião. Bota prego limado, bota tudo pra rachar o pião competidor. Roda, pião! Racha, pião! Se você não pode rachar este colégio, nem o mundo nem a vida racha pelo menos o pião! (Mas eu não sei, nunca aprendi rachar pião. Imobilizo-me)”

Em “Campeonato de Pião” Drummond descreve uma das brincadeiras dos alunos nos recreios. Os jogos e divertimentos eram promovidos frequentemente nos recreios das Divisões. Além do pião jogavam ping pong, barra bandeira, barra militar, futebol, andavam de bicicleta e soltavam papagaios(pipas).

Alunos no recreio sob supervisão do Padre Prefeito. Acervo colégio Anchieta
Alunos no recreio sob supervisão do Padre Prefeito. Acervo colégio Anchieta

POSTOS DE HONRA

“148 generais à frente de três Divisões – Pequenos, Médios e Maiores. Incontável o  número de coronéis. Estarei no colégio ou isto é o Exército? Se os coronéis anelam promoção, podem os generais ser rebaixados, cada patente não dura mais do que dois meses. Eu, general, neste bimestre? Só porque estudei cem réis de geografia, duzentos réis de português? Meu Deus, é muita glória para tão frágeis ombros ignorantes. Jamais serei general em aritmética.”

CERTIFICADOS ESCOLARES

“Do certame literário neste grande educandário, o nosso aluno mineiro, pacato, aplicado, ordeiro, sai louvado com justiça, por ter galgado na liça este sonhado ouropel: o posto de coronel em francês, inglês, latim. Que Deus o conserve assim. Em literário certame após rigoroso exame escrito, oral e o que mais, de resultados cabais, o nosso caro estudante, discreto, pouco falante, conquistou em português, sem mas, porém ou talvez, o ápice colegial dos galões de general. Por seu bom comportamento em cada hora e momento, seja em aula ou no recreio, na capela ou no passeio, acordado e até no sono(do que todos dão abono), receberá hoje ufano o prêmio maior do ano, e que em silêncio não passe: medalha de prima classe. Que resta fazer agora no adiantado da hora de nossa faina escolar em forma complementar com relação a este aluno e que se torne oportuno para melhor prepará-lo qual adestrado cavalo, da vida no páreo duro?

Que seja expulso – no escuro.”

Os dois poemas “Postos de Honra” e “Certificados Escolares” se referem a emulação. Uma característica marcante da pedagogia dos Jesuítas era emulação, com o estímulo à competição entre os alunos, distribuição de prêmios e recompensas. A emulação era incitada entre os anchietanos através de concursos bimestrais que culminava na solenidade de nomeação dos postos de honra e entrega de medalhas. Não os inventaram os Jesuítas; mas à sua distribuição deram tal realce e esplendor que a elevaram à altura de um dos atos mais importantes e ansiosamente desejados da vida escolar. Esta solenidade era denominada de Festa das Dignidades com a proclamação dos Postos de Honra, distribuindo-se aos melhores nas disciplinas condecorações de patentes militares de coronéis, generais, etc.

A solenidade era pomposa participando os familiares dos internos, autoridades eclesiásticas e civis, especialmente convidadas. Nestes eventos bimestrais os alunos briosos e aplicados eram galardoados na proporção de seus méritos. Para os que não foram premiados ficava a mensagem de que deveriam redobrar os seus esforços para na próxima Festa das Dignidades participarem da alegria dos vitoriosos. Drummond recebeu a patente de coronel em francês, inglês e latim e de general em português. Octávio Barbosa da Silva não se furtou a comprar algumas medalhas de alunos que ganharam muitas e estavam dispostos a negociá-las. Por isto Drummond escreveu o poema “sacrifício”, que segue adiante.

SACRIFÍCIO

“Otávio, Otávio, que negócio é este? Vadias ano inteiro e te despedes com o peito faiscando de medalhas. – É, troquei-as por bombas e brioches semana após semana, mês a mês, e muito me custou esta grandeza. Passei fome…e alimento-me de glória.”

Aluno premiado no concurso dos Postos de Honra e Dignidades. Acervo colégio Anchieta
Aluno premiado no concurso dos Postos de Honra e Dignidades. Acervo colégio Anchieta

DORMITÓRIO

“Noite azul-baço no dormitório onde três lâmpadas de tom velado controlam minha ensimesmada  quietude. Que faço aqui, longe de Minas e meus guardados, neste castelo de aulas contínuas e rezas longas? Prisão de luxo, todo conforto, luz inspetora de sonhos ilícitos. Joelho esticado: nenhuma saliência a transgredir a horizontal postura de sono puro. Fria Friburgo, mas aqui dentro a paz de feltro. No azul mortiço de oitenta camas, boiam saudades de longes Estados, distintas casas, tantas pessoas. Incochilável, o irmão-vigilante também passeia sob cortinas sua memória particular? Uns já roncando. O azul nublado envolve em rendas de morte vaga os degredados filhos-família. Fugir,  nem penso. Mas fujo insone, meu pensamento alcança o longe, apalpo-me egresso do grande cárcere.

Vou correndo, vou voando, chego em casa de surpresa, assusto meu pai-e-mãe:
– Não quero, não quero mais, não quero mais voltar lá.
(É tudo que sai da boca, é tudo que sei dizer).
– Que papelão!
Se não voltar, te castigo, te deserdo, te renego.
O dinheiro posto fora, as esperanças frustradas,
Botarei na tua conta em cifras de maldição.
– O que o senhor fizer está bem feito, acabou-se,
mas não me tire de junto da família e do meu quarto.
Me ponha tangendo gado ou pregando ferradura,
Me faça catar café, aos capados dar lavagem, mas eu não volto mais lá.
É bom demais para mim, é tudo superior,
mas lá eu sou infeliz, lá eu aprendo obrigado,
Não por gosto de aprender.
Tem hora de liberdade e hora de cativeiro
mas a segunda é total, a primeira, imaginária.
Tem hora de se explicar, hora de pedir desculpa,
Hora de ganhar medalha, hora de engolir chacota
(é a hora de ler a nota do nosso comportamento),
Hora de não reclamar, hora de…
Por Deus, não quero voltar a esse estranho paraíso
calçado de pão de ló, futebol e humilhação.
– Já disse: está decidido. Some da minha presença.
– Papai!….
A tosse ao lado me traz de volta ao azul-penumbra.
Quando termina, se é que termina, o meu exílio?
Que tempo é novembro, se ainda há novembro no calendário?
Na noite infinda, por que minha noite ainda é maior?
Fugir não adianta. Não adianta senão: dormir.”

Turma de alunos médios do ano de 1918. Acervo colégio Anchieta
Turma de alunos médios do ano de 1918. Acervo colégio Anchieta

Por que Drummond se refere ao colégio Anchieta como “castelo” de aulas contínuas e rezas longas? A antiga casa sede de fazenda onde funcionou este internato, inicialmente abrigava a administração da vila. Por estar no alto de uma colina, como os castelos europeus, foi chamado pelos colonos suíços instalados em Nova Friburgo de château. Já disse antes que os internos ouviam missa todos os dias, só sendo dispensados os alunos enfermos ou indispostos. Drummond em “rezas longas” queixa-se  mais uma vez do excesso dos ofícios religiosos. Conforme Émile Durkheim em “Evolução Pedagógica”, a alma de toda a educação nos colégios da Companhia de Jesus era a formação religiosa, que o Ratio Studiorum recomendava fosse ministrada menos como conhecimento que se transmite e mais como vida que se vive. A atmosfera que respiram os alunos deveria impregnar-se toda de uma vida religiosa sincera e profunda. A missa, a prática dos sacramentos, a oração quotidiana integrariam espontaneamente as atividades colegiais. Nos colóquios particulares, na explicação dos autores, na escolha das leituras, os mestres aproveitariam o ensejo e inculcariam o amor da virtude e orientaria as almas para Deus. Os Jesuítas queriam, antes de tudo, fazer de seus alunos servidores fiéis da Igreja, sujeitos dedicados da Santa Sé.

Nem todos os internos suportavam o internato. Foi registrado no Diário do Colégio Anchieta de 23 de abril de 1913, que o pai do aluno 25 levou o menino “que estava sempre a chorar”.  Escreveu um interno no Aurora Colegial de 12 de dezembro de 1915: “Parece-me ver ainda o dia em que vim tristonho e saudoso acompanhado de meu pai querido também triste e magoado”. Os alunos chegavam melancólicos, principalmente os mais jovens com idade entre 8 e 10 anos, com choramingas a todo momento. No internato havia hora certa para estudar, para brincar e a monotonia da vida colegial provocava aversão em alguns alunos “e em nosso juízo de criança imaginávamos que semelhante vida era um jugo insuportável”, escreveu o aluno Leopoldo Franca no Aurora Colegial de 15 de novembro de 1911. Gradativamente vão se amoldando ao novo meio e as lágrimas já não correm tão abundantes.

No trecho do poema acima, em que “boiam saudades de longes Estados, distintas casas”, já me referi anteriormente que vinham meninos de variadas partes do país. Já em “distintas casas” refere-se aos filhos da nata da sociedade que estudava no Anchieta. O memorialista Octávio Barbosa da Silva escreveu que “o château foi em todos os tempos e em todas as épocas, um farto celeiro de homens ilustres[…]uma espécie de viveiro, a tal Gaiola de Ouro.” O “irmão-vigilante” eram os Irmãos coadjutores, auxiliares dos Jesuítas que se ocupavam no preparo das refeições; da alfaiataria; cuidavam da botica; administravam os empregados; exerciam ofícios de marceneiros, pintores, ferreiros, tipógrafos e produziam vinho, cerveja e licor. Com relação aos “degredados filhos-família” Drummond se refere aos internos vindos de Estados distantes, que não visitavam a família durante anos, passando as férias no colégio.

Os Irmãos auxiliavam os Jesuítas no internato. Acervo colégio Anchieta
Os Irmãos auxiliavam os Jesuítas no internato. Acervo colégio Anchieta

Com relação ao “estranho paraíso, calçado de pão de ló, futebol e humilhação”, o pão de ló no café da manhã era uma iguaria simbólica, assim como a manteiga acrescida ao pão, nos dias de passeio e celebrações. O poeta se refere a fuga em diversos momentos concluindo que “Fugir não adianta”. Existem alguns registros de fugas de alunos no diário dos padres, que eram em seguida localizados. Um caso peculiar foi de um interno foragido localizado em Boca do Mato, município de Cachoeiras de Macacu e trazido no dia seguinte pelos funcionários do colégio. Ele caminhara a pé 20 km, descendo a serra. Os alunos que  “escapavam” eram expulsos do colégio.

Os degredados filhos-família que passavam as férias no Anchieta. Acervo colégio Anchieta
Os degredados filhos-família que passavam as férias no Anchieta. Acervo colégio Anchieta

DIREITO DE FUMAR

“O pensamento de cigarro vem, ondulante, frequentar-me, eu que não fumo. Bem que o pai podia consentir: ‘O 74 está crescido, pode fumar dois Sônia por semana.’ Assim decide a lei, aos Grandes permissiva, quando o pai autoriza esse limite. Privilégio de Grandes, e sou Grande. Hei de fingir que fumo, se puder levar à boca este direito e à vista de todos a eminência de ser fumante às claras. Mas se eu pedir ao pai e ele me nega? Pior: se ele concede? Não sei, não sei tragar (tragar, essencial entre varões). Abomino o que sonho, me divido e dividido entro na conjura escusa dos fumantes clandestinos. Atento às numerosas portas de privadas, o Prefeito não vê que em cada uma no tampo da latrina um toco de cigarro está à espera de ser fumado e conservado para outro fumante e mais um outro até que apenas cinza desapareça na descarga. Um infinito resto de cigarro, mais duradouro que o cigarro inteiro, e ai de quem esgote essa riqueza ainda a tantos outros destinada. Mas qual o desgraçado a sair de boca aberta, revelando o cheiro do prazer, ou que lá dentro fez soltar a treda fumacinha que a discrição das portas atravessa e acaba com a festa das baganas antes que eu (e sou Grande) participe?”

Os alunos das Divisões dos maiores e médios, com a permissão dos pais, poderiam fumar dois cigarros por semana. Mas tudo indica que compravam maços de cigarro clandestinamente. No pátio dos recreios havia inúmeros banheiros com paredes geminadas, a que o poeta descreve como “numerosas portas de privadas”. As latrinas do Colégio Anchieta seguiam o sistema inglês recomendado pelos médicos higienistas nos colégios-internato, instaladas fora do edifício. Assim é que uma “bagana” de cigarro era tragada com prazer e disputada com furor entre os alunos às escondidas do Padre Prefeito. Conforme o memorialista Octávio Barbosa da Silva “De cada vez um entrava no reservado, com os vigias à porta, para fumar um pito enquanto os de fora, angustiados, ciciavam o aviso deixa para mim o cotôco colega, cena que ia até o queimar das unhas.”

Alunos no recreio ao fundo as latrinas atras do pavilhao 1915. Acervo colegio Anchieta scaled
Alunos no recreio, ao fundo as latrinas, atrás do pavilhão, 1915. Acervo colégio Anchieta

PUNIÇÃO

“74 fique de coluna. Lá vou eu, de castigo, contemplar por meia hora o ermo da parede. Meia hora de pé, ante o reboco, na insensibilidade das colunas de ferro (inaciano?) me resgata. Eis que eu mesmo converto-me em coluna, e já não é castigo, é fuga e sonho. Não me atinge a sentença punitiva. Se pensam condenar-me, estão ilusos. A liberdade invade minha estátua e no recreio ganho a azul distância.”

Drummond recebeu a matrícula de número 74 no colégio Anchieta. Além da cafua existia no internato o castigo da “coluna”, que já me referi anteriormente. O memorialista Octávio Barbosa da Silva nos informa que ficavam de coluna, ou seja, de pé, com a cara voltada para a parede. De um modo geral este castigo era aplicado durante o recreio.

ARTE FULMINADA

“O tapete de areia colorida que vamos delineando no recreio há de ser celebrado toda a vida como arte maior do nosso tempo. O risco não é nosso. Irmão Luís concebeu o mirífico traçado, mas se ajudo na obra estou feliz. Cada bloco amarelo é meu florão. Medieval já me sinto a construir a catedral em ouro friburguense, em parte, pelo menos coisa minha. Contemplo a criação. Deus fez o mesmo? Talvez. E enciumado, num momento, destrói nosso tapete a chuva e vento.”

Ano de 1918 tapete de areia criacao dos Jesuitas. Acervo colegio Anchieta scaled
Ano de 1918, tapete de areia, criação dos Jesuítas. Acervo colégio Anchieta

A confecção do tapete de areia com ilustrações geométricas, de catedrais, igrejas ou cenas religiosas é criação dos Jesuítas. Esta prática ocorria no Colégio Anchieta no dia da festa do santo padroeiro das Divisões e se estendeu na celebração de Corpus Christi. Drummond escreveu “O risco não é nosso”. De fato, o desenho no tapete era feito pelo Padre Prefeito ou Irmão cabendo aos alunos a tarefa de preencher os desenhos com areias coloridas. Feito o risco no pátio do recreio da Divisão, os alunos levavam aproximadamente dois dias para preenchê-lo com terras graníticas de variadas cores. Para a confecção do tapete de areia um grupo cavoucava terra vermelha, terra preta e o alvíssimo saibro nos barrancos.

Enquanto isto outro grupo peneirava e outro espalhava a areia. Era um verdadeiro formigueiro em contínuo vai e vem de caixões de areias multicores transportados pelos meninos, animados para preencher o desenho. Estes tapetes eram verdadeiras obras artísticas que atraíam a visitação da população friburguense. O título do poema “Arte Fulminada” tem uma explicação. Como o tapete era confeccionado uns dois dias antes, era comum que o vento ou uma eventual chuva danificasse a obra. Por isto, no dia da festa do orago, após o café da manhã, os alunos se dirigiam pressurosos ao recreio para reparar os danos provocados pelo vento ou chuva e dar a última demão no tapete de terras coloridas.

ESPLENDOR E DECLÍNIO DA RAPADURA

“Os meninos cariocas e paulistas de alta prosopopeia nunca tinham comido rapadura. Provam com repugnância o naco oferecido pelo mineiro. Pedem mais. Mais. Ao acabar, há um pequeno tumulto. Daí por diante todos encomendam rapadura. Fazem-se negócios em torno de rapadura. Há furtos de rapadura. Conflitos por causa de rapadura. Até que o garoto de Botafogo parte um dente da cristalina coleção que Deus lhe deu e a rapadura é proscrita como abominável invenção de mineiros.”

Durante as horas de recreio, comumente os alunos paulistanos formavam um bloco distinto, não interagindo com os colegas de outros Estados. Eram tidos como orgulhosos, salvo algumas exceções. Os nortistas adotaram então o mesmo costume, mas não se isolavam de todo; agrupavam-se por se entenderem melhor entre si, trocando ideias e revivendo saudades de sua região. Drummond neste poema nos informa que paulistas e cariocas experimentaram e gostaram da rapadura passando a encomendá-la. Já me referi anteriormente que os internos tinham o “bolsinho”, uma quantia que poderiam fazer uso para encomendas, geralmente de doces. Drummond faz uma ironia das diferenças culturais sendo a rapadura protagonista da hilariante história. Botafogo é um bairro do Rio de Janeiro, na ocasião com belíssimos palacetes e chácaras.

FÓRMULA DE SAUDAÇÃO

“As flores orvalhadas parecem pressurosas de ofertar ao amado Reitor, ao bondoso Ministro, ao querido Prefeito a fragrância de suas pétalas. Colhei-as e aspirai-as e que o suava olor por elas derramado vos permita esquecer pequenos dissabores, passageiros desgostos que nossa irreflexão já vos tenham causado. Arrependidos, pois, ousamos implorar um indulto completo, bem assim prometemos envidar mil esforços para que dora em diante nosso procedimento só vos desperte júbilo como indenização pelo passado. Feliz aniversário, muitas felicidades!”

No topo da hierarquia do colégio Anchieta estavam o Padre Reitor, a seguir o Padre Ministro, que de um modo geral cuidava da parte acadêmica e os Padres Prefeitos das três Divisões, e como dito antes acompanhavam os internos o dia inteiro em suas atividades escolares e de recreação. A festa de aniversário de um destes clérigos era muito festejada. Havia banquete, torneios esportivos ou passeios, academias no teatro, etc. No caso da data natalícia do Padre Prefeito de uma determinada Divisão, as outras duas enviavam “embaixadas” cumprimentando-o e ofertando-lhe algum mimo. O Padre Justino M. Lombardi foi o reitor quando Drummond estudou no Anchieta.

DISCURSOS

Chegam os padres de Paris. São festejados com discursos. Fazem anos os padres importantes. Envolve-os o aroma de discursos. Convalescem os padres de sombrias pneumonias duplas. Em discursos a alta se proclama. Que fizeram de imenso? Chegaram, aniversariaram, enfermaram, escaparam. A oratória celebra estes prodígios em tropos sublimes. Como falam bonito meus colegas. Que anástrofes, metáforas, perífrases, que Cíceros, Demóstenes e Ruis. Na aula de português eles nem tanto. Mas é soltar o verbo e jorram estrelas em forma de vocábulos para saudar nossos amados guias. O espírito da eloquência baixa de não sei onde e lhes inspira rasgos teatrais de Mont’Alverne. É pena: ainda não vi ninguém fazer um discursinho mesmo chocho ao Irmão Falcão, oportuna cervejinha por ele fabricada.”

Drummond ironiza os discursos em tributo aos padres que chegam, aniversariam, adoecem e convalescem. Havia um gênero literário que gozava de verdadeira preeminência na Companhia de Jesus, a oratória. A eloquência era a arte suprema, cuja conquista havia de coroar os estudos, e por isso é que a retórica era a coroação da vida escolar. De fato, havia sempre um aluno orador para receber um eclesiástico, para saudar um visitante ao colégio, um padre aniversariante, discursar nas datas cívicas, no panegírico do santo padroeiro da Divisão, na colação de grau, entre outras situações da vida cotidiana no internato. Drummond se queixa: “É pena: ainda não vi ninguém fazer um discursinho mesmo chocho ao Irmão Falcão, oportuna cervejinha por ele fabricada.” O Irmão Falcão, corruptela do italiano Falconi foi treinado para ser cervejeiro e a fabricação de cerveja no colégio ficava sob a sua direção. A cerveja era preparada para os passeios dos alunos ou alguma celebração festiva. Os Irmãos igualmente produziam vinho e licores, este último servido como remédio aos alunos. O memorialista Octávio da Silva mencionou “a fábrica de cerveja a cargo do bondoso Irmão Falcão[…] O irmão Falcão contribuía com a sua cerveja feita ‘à moda da Casa’ e tínhamos assim extraordinariamente, um regabofe de primeira.”

RETIRO ESPIRITUAL

“Padre Natuzzi, voz de ouro, fala do céu, essa infinita aurora a que seremos todos transportados[…] É pregador tão célebre, sua prédica penetra na consciência sem passar por distraída orelha. Já deliberei: a santidade é meu destino. Juiz não quero ser, nem artilheiro, médico, romancista ou navegante. Quero ser e vou ser: apenas santo. Pode voltar, Padre Natuzzi, descansado…”

Em “Retiro Espiritual” Drummond se refere ao falecimento do Padre Natuzzi. Possivelmente era o Padre Espiritual, função que um Jesuíta exercia no colégio e que promovia o retiro espiritual dos alunos, realizado uma vez ao ano, além de outras funções.

O COLEGIAL E A CIDADE

Fizeram bem os suíços fundando Nova Friburgo, pois um século depois esta semana de festas celebra o acontecimento. Menos aulas; mais saídas. Vamos cantar pelas ruas louvores a Deus e à Pátria, mas vamos principalmente ver as doces friburguenses com que sonhamos à noite e mesmo durante o dia, sonhamos…sem esperança. Barcos no rio Bengalas, despertam admiração e mitos venezianos. Pudéssemos nós levar essas meninas nos barcos e de rio em rio até às ondas do mar infindo para cruzeiros bem longe dos padres que nos vigiam…Carlos, não pense mais nisso, contente-se em ver as flores desabrochadas adrede para exaltar os suíços. Entre os alunos, cantores de bela voz empostada na missa campal entoam motetes bem ensaiados. Têm seu minuto de glória. Você não sabe cantar. Pegou então a espingarda, saiu fardado e chibante(não muito, é claro), formando no batalhão escolar, tenente Brasil à frente, nessa rude caminhada ao ritmo da Pátria Amada! Dor nas costas! A que vieram estes suíços? Fundaram sua colônia, e um colégio depois se plantou aqui? Estava bem descansado em meu sobrado mineiro, era rei da minha vida, imperador de mim mesmo, e agora essa confusão. Friburgo Futebol Clube acolhe nossos dois times. Por 4 a 1 os vermelhos ganham folgados dos pretos. Você nem é dos vencidos. Que faz aí, de boboca? Já vem a sombra caindo sobre o musgo das encostas e os alados movimentos e os bigarrados vestidos das moças perturbadoras em grupos pelos canteiros. E quando a tarde falece fica tudo mais difícil no peito de aluno interno. Adeus, cidade, adeus, vida cá fora rumorejante. Pior ainda na tarde, pois já se acendem os fogos da noite festejadora. Toda Friburgo relumbra de luzes especiais e nós só podemos vê-las do interior do chatô como os cativos de Antero, lidos em livro escondido, contemplam o firmamento. É nisso que dão leituras de poesias sombrias. A noite do centenário da chegada dos suíços é noite maior na gente. Sentir que lá fora estão se divertindo fagueiros, que há risos, beijos, cerveja e não sei mais que delícias, e eu aqui me torturando com tábua de logaritmos…vão para o inferno os centenários!”

Em “O colegial e a cidade”, Drummond discorre sobre os festejos em Nova Friburgo, no   “centenário da chegada dos suíços”. Um acordo firmado no ano de 1818 entre o Rei D. João VI e a Confederação Helvética, hoje Suíça, prescrevia a doação de datas de terras, sementes e animais às famílias colonas, que em contrapartida deveriam se dedicar ao cultivo de alimentos. Entre novembro de 1819 e março de 1820 chegaram 1.631 colonos de diversos cantões da Confederação Helvética, na fazenda do Morro Queimado, em cuja casa sede os Jesuítas instalaram o colégio. Não obstante o município de Nova Friburgo ter sido criado em 03 de janeiro de 1820, festeja-se o centenário a partir da assinatura do acordo de 1818. Em “menos aulas; mais saídas” nota-se que a festa do centenário foi bem recebida, pois não haveria aulas. Já em “Barcos no rio Bengalas, despertam admiração e mitos venezianos”, Drummond menciona o rio que corta o centro da cidade e em mitos venezianos refere-se a “Festa Veneziana”. Trata-se de alguns singelos botes que navegavam em um curto trajeto do rio, numa alusão as gôndolas na cidade de Veneza. Os motetes a que se refere cantados na missa campal era uma tradição nos ofícios religiosos solenes no Anchieta.

Os alunos somente saíam do colégio formados em batalhões com o uniforme branco, mesmo nos dias de passeios. O trecho do poema “Pegou então a espingarda, saiu fardado e chibante(não muito, é claro), formando no batalhão escolar, tenente Brasil à frente”, para ser entendido, necessita de uma explicação. No ano de 1908, um regulamento do Ministro da Justiça, Augusto Tavares de Lira, determinou a formação de reservistas de rapazes maiores de 16 anos, nos estabelecimentos de ensino secundário públicos e particulares. O exército indicava um instrutor, fornecia armamento e munição, e o treinamento era realizado no educandário. O colégio Anchieta chegou a inaugurar uma linha de tiro em suas instalações formando a cada ano uma turma de reservistas. Nas saídas dos batalhões colegiais os recrutas portavam espingardas mauzer e os demais uma réplica em madeira. O tenente citado por Drummond era o instrutor Aristides Paes de Souza Brazil, oficial do Exército, que acabou sendo contratado como professor de esgrima, desenho e pintura no Anchieta.

Ano de 1918. Pegou a espingarda e saiu fardado e chibante. Acervo colegio Anchieta scaled
Ano de 1918. Pegou a espingarda e saiu fardado e chibante. Acervo colégio Anchieta

O Friburgo Football Club foi formado por ex anchietanos, como já mencionei. Em razão disto, na comemoração do centenário, os alunos do Anchieta foram convidados a jogar  uma partida de futebol no campo desta sociedade esportiva. Drummond se queixa que ao entardecer tiveram que retornar ao “chatô”, como se referiam ao Anchieta, já explicado anteriormente. No poema refere-se aos livros lidos escondidos. Realmente era proibido aos internos leituras que não fossem as indicadas pelos mestres. Drummond lamenta o retorno ao colégio no melhor da festa, “E quando a tarde falece fica tudo mais difícil no peito de aluno interno. Adeus, cidade, adeus, vida cá fora rumorejante[…]que há risos, beijos, cerveja e não sei mais que delícias, e eu aqui me torturando com tábua de logaritmos”. Deveria estar na sala de estudos. Mesmo sendo um dia feriado, na chegada ao colégio, antes do jantar, servido as 4h da tarde, os alunos aguardavam na sala de estudos fazendo alguma atividade. Eram proibidos de circular livremente pelo colégio esperando, por exemplo, o jantar. Da colina onde ficava o colégio podiam ver naquela época, pelas janelas, as festas e fogos na cidade, o que hoje é impossível em razão do crescimento urbano. Injuriado por estar ausente na festa, mandou para o inferno os centenários!

CERTIFICADOS ESCOLARES

“…Que resta fazer agora no adiantado da hora de nossa faina escolar em forma complementar com relação a este aluno e que se torne oportuno para melhor prepará-lo qual adestrado cavalo, da vida no páreo duro? Que seja expulso – no escuro.”

No Diário do colégio Anchieta de 30 de outubro de 1919 foi registrado: “Saiu esta manhã o aluno 74”, como dito antes, o número de matrícula de Drummond. Foi desligado juntamente com ele o aluno de número 54, mas não sabemos se estavam envolvidos na mesma situação. Não era nada excepcional a expulsão de internos do Anchieta. De acordo com Octávio Barbosa da Silva, “Drummond era quieto no porte, mas de um socialismo avançado em seus apreciados escritos.” Octávio escreveu em suas memórias:

“Fui um aluno rebelde, amante de todas as travessuras. Meus companheiros prediletos eram o Carlos Drummond de Andrade (cognominado de O Anarquista), o Gaúcho[…] bruto nos jogos como um touro, o Enéias (o conhecido Bicanca) dono de um shoot potentíssimo que ia de um goal a outro e outros elementos piores do que eu. Estávamos sempre prontos para todas as diabruras e artes…”

Na poesia “Fórmula de Saudação” Drummond referiu-se ao Padre Reitor como amado, o Padre Ministro como bondoso e o Padre Prefeito como querido. Reconhece neste poema que os alunos davam margem às punições com as suas peraltices. Dirigindo-se aos Jesuítas escreveu:

“…vos permita esquecer pequenos dissabores passageiros, desgostos que nossa irreflexão já vos tenham causado. Arrependidos, pois, ousamos implorar um indulto completo, bem assim prometemos envidar mil esforços para que d’ora em diante nosso procedimento só vos desperte júbilo como indenização pelo passado.”  

ADEUS AO COLÉGIO

“Adeus colégio, adeus vida vivida sob inspeção,
dois anos jogados fora ou dentro de um caldeirão
em que se fritam destinos e se derrete a ilusão.
Já preparo minha trouxa e durmo na solidão.
Amanhã cedo retiro-me, pego o trem da Leopoldina,
vou ser de novo mineiro. Da angústia a lâmina fina começa a me cutucar. É uma angústia menina, ganhará forma de cruz ou imagem serpentina. Sei lá se sou inocente ou sinistro criminoso. Se rogo perdão a Deus ou pelo abrigo ao Tinhoso. Que será do meu futuro se o vejo tão amargoso? Sou um ser estilhaçado que faz do medo o seu gozo.”

Em Fria Friburgo Drummond expõe suas lembranças do Anchieta. Acervo colégio Anchieta
Em Fria Friburgo Drummond expõe suas lembranças do Anchieta. Acervo colégio Anchieta

Drummond se refere saudoso a cervejinha do Irmão Falconi, a banda colegial guerreira, a orquestra dos alunos, aos colegas músicos, aos maestros Strutt e Mancini, a canção do soldado assobiada nos passeios, aos convescotes na chácara Braga, aos latões de tutu trazidos pela carrocinha, ao tapete de areia colorido, entre tantas outras boas lembranças. Era natural que o menino passarinho solto na fazenda, não suportasse o regime de internato. Drummond estava bem descansado em seu sobrado mineiro, era rei de sua vida, imperador de si mesmo, quando foi enviado ao internato na Fria Friburgo. Ainda que faça críticas acrimoniosas a disciplina, adorou os dois anos que passou no internato lembrando com humor e saudosismo sua passagem pelo Colégio Anchieta. A leitura de “Fria Friburgo” não deixa margem para dúvida.


Janaína Botelho – Serra News

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