Barão de Tautphoeus em Friburgo: o mestre de Joaquim Nabuco
A região que deu origem ao município de Nova Friburgo foi desmembrada de Cantagalo em 03 de janeiro de 1820, para abrigar uma colônia formada por famílias da Confederação Helvética, atual Suíça. Na vila deste novo município foram construídas cem casas, um depósito de víveres, um açougue, dois pequenos moinhos, uma olaria e dois fornos para cozer o pão. Na casa sede da fazenda do Morro Queimado, sesmaria que compunha a vila, se estabeleceu o Senado da Câmara de vereadores, funcionava uma modesta capela onde se realizavam os ofícios religiosos e uma enfermaria. Os colonos suíços passaram a chamar esta casa sede de château, por estar erguido no alto de um outeiro, à cavaleiro da vila e por funcionar a administração do município. Neste local os vereadores realizavam as sessões e residia o inspetor da colônia. O château pertencia à Câmara Municipal e localizei no livro de atas desta instituição que no ano de 1853, o château e as glebas em seu redor foi adquirido por aforamento perpétuo pelo professor de matemática Francisco Marques de Souza, para a instalação de um estabelecimento de ensino. Marques de Souza, natural do município de Cantagalo, vereador em Nova Friburgo era descendente do almirante Tamandaré e genro do médico Jean Bazet, que acompanhara os colonos desde a Suíça até a fazenda do Morro Queimado.
Este estabelecimento de ensino era denominado de colégio de São Vicente de Paulo, filial de seu homônimo no Rio de Janeiro onde era oferecida instrução primária e secundária. O vice-diretor era o Padre Bernardo Lira da Silva. Na classe de instrução primária se ensinava a ler, escrever, as quatro operações, princípios de gramática e de geografia. O curso secundário era de cinco anos compreendendo todos os preparatórios para as academias. Eram ministradas as seguintes disciplinas: 1° ano português, latim, francês, geografia e aritmética; 2° ano português, latim, francês, inglês, história antiga, aritmética e desenho; 3° ano: português, latim, francês, inglês, alemão, história romana, aritmética comercial, álgebra, geografia astronômica, desenho e música; 4° ano latim, inglês, alemão, geometria, filosofia, retórica, história média e escrituração mercantil; 5° ano exercícios sobre as línguas ensinadas, história moderna e nacional, filosofia, retórica, trigonometria retilínea, princípios de física e mecânica adaptados à indústria do país. As classes de alemão, grego e belas artes como não faziam parte dos exames preparatórios eram pagos separados. Havia um curso especial para os que se destinavam ao comércio.
No fim do terceiro ano os alunos estavam habilitados a entrar para as escolas militar e de marinha e do quinto ano para as academias de direito e de medicina. Foram alunos desde colégio os filhos a elite fazendeira da região a exemplo de Francisco Clemente Pinto Sobrinho, Manoel Ubelhart Lemgruber, Antônio Ubelhart Lemgruber, Elias Antônio de Moraes, que viria a ser o segundo Barão das Duas Barras, João Pedro da Veiga Barbuda e Antônio Augusto Ribeiro de Almeida. Era contemporâneo do São Vicente de Paulo o Instituto Colegial de Nova Friburgo, do inglês John Henry Freese, estabelecido desde 1841 na vila de Nova Friburgo.
Francisco Marques de Souza estabeleceu uma parceria com o famoso professor bávaro Barão de Tautphoeus. Jacob José Hermann, o Barão de Tautphoeus nasceu em Ingolstadt, perto de Munique em 22 de setembro de 1812. Tautphoeus, da nobreza europeia cursou as melhores escolas de seu país viajando pela Ásia, Grécia e em Marselha, na França conheceu a sua esposa Camilla Casolane Cherueb, nobre de sangue árabe-italiano. Tiveram uma filha, Mariana, que nasceu em Paris. O jovem Tautphoeus por motivo político foi forçado a expatriar-se imigrando para o Rio de Janeiro em 1842, com a sua esposa e filha. Na Corte o barão fundou o colégio Tautphoeus além de ser lente no colégio Pedro II. No Jornal do Commercio de 16 de dezembro de 1857 comunica a transferência de seu colégio para Nova Friburgo se associando ao colégio de São Vicente de Paulo. Além de dar aulas no colégio das disciplinas de inglês, história e geografia, Tautphoeus se elege vereador na vila serrana exercendo um único mandato. O nome do barão aparece pela primeira vez na ata da Câmara na sessão de 28 de dezembro de 1860 participando de uma comissão de saúde pública para avaliar o estado sanitário do município. O último registro foi na sessão de 13 de outubro de 1862.
No Correio Mercantil um cantagalense tece elogios a nova sociedade destacando a escolha sensata de Nova Friburgo pela salubridade de seu clima e a conveniência dos filhos estudarem longe das epidemias intermitentes do Rio de Janeiro.
“O colégio de São Vicente de Paula, vantajosamente conhecido por ter dado sempre bons alunos nos exames públicos, e que pelos seus esforços do seu digno diretor o Sr. Marques se acha em um florescente estado, vai ganhar com esta aquisição dobrado valor. Na verdade, o colégio do sr. Barão de Tautphoeus, um dos primeiros da Corte e o único que apresenta, como li nos jornais, o mais brilhante resultado nos exames feitos perante o conselho de instrução pública, resultado não conseguido até a agora por colégio algum; o seu diretor o sr. Barão de Tautphoeus, cuja vasta ilustração é por todos reconhecida, (…) Tudo isto me faz crer que em Nova Friburgo acharão os pais de família uma garantia segura na prosperidade na educação literária de seus filhos, reunida às importantes condições de salubridade, pois ninguém ignora quão salubre e ameno é o clima deste município. Ambos estes estabelecimentos, fundidos em um só com a denominação de colégio de São Vicente de Paula promete à mocidade indubitáveis vantagens, e ainda mais a facilidade de proporcionar aos habitantes de Cantagalo, Itaboraí, Porto das Caixas, e aos de todas as circunvizinhanças de Nova Friburgo os meios de educar seus filhos, sem temor das epidemias de que é quase sempre vítima a Corte. Felicito ao Sr. Marques, como meu conterrâneo, e ao sr. Barão de Tautphoeus pela ideia que tiveram de reunirem suas forças literárias e por haverem escolhido tão acertadamente como lugar de seu estabelecimento a vila de Nova Friburgo. Um Cantagalense.” Correio Mercantil, 19 de janeiro de 1858.
No internato do colégio de São Vicente de Paulo o aluno pagava uma joia na entrada para o fornecimento de cama, lavatórios, bacias, entre outros utensílios e para o serviço de roupa lavada e engomada, com todos os concertos necessários. O colégio fornecia livros, calçados e roupa se os pais assim o determinassem. Em 1858 o Colégio de São Vicente de Paulo possuía 155 alunos, 95 internos e 13 instruídos gratuitamente. No Jornal do Commercio de 1855 um interessante registro sobre este estabelecimento de ensino.
“Chegando a esta vila de Nova Friburgo assisti aos diferentes divertimentos e ao Te Deum Laudamus em ação de graças ao aniversário da independência nacional;(…) ao amanhecer do dia 7 uma banda de música percorrendo a vila foi postar-se no grande terraço do colégio de São Vicente de Paulo, onde tocou por mais de uma vez o hino nacional elevando-se neste momento uma bem acabada bandeira feita pelo prof. do colégio (…) passou-se depois a celebrar missa na capela do colégio em louvor de São Vicente de Paulo, padroeiro deste importante estabelecimento de instrução primária e secundária; precedeu à missa o hino nacional que foi tocado pela mesma orquestra e cantado pelos alunos(…) Na noite deste dia houve espetáculo no teatrinho particular do colégio…”
Na publicidade do colégio de São Vicente de Paulo, assim como fazia o Instituto Colegial do prof. Freese, a salubridade do clima de Nova Friburgo e a ausência de epidemias, notadamente da febre amarela era destacada, como este no Jornal do Commercio de 1858. “…os pais que confiarem seus filhos a este estabelecimento(…) ficarão livres do receio que inspiram para a saúde dos meninos o clima da Corte e as epidemias que quase todos os anos os assolam.” O colégio tinha escritórios na Rua Direita, na Rua da Quitanda e na Rua da Assembleia com representantes para atender aos pais dando explicações sobre o estatuto do colégio. Neste local deveriam pagar o trimestre adiantado designando a casa onde se poderia receber as futuras pensões. Havia uma pessoa encarregada, como o subdiretor Joaquim José Lamprea ou o próprio barão de conduzir os alunos desde o porto do Sampaio, no Rio de Janeiro até Nova Friburgo com segurança.
Os diretores para tranquilizar os pais, na chegada dos alunos ao colégio utilizavam a imprensa, a exemplo de um comunicado que fez em 09 de janeiro de 1859, no Jornal do Commercio. “Como as notícias que correram acerca do mau estado da estrada do Porto de Sampaio a Nova Friburgo poderiam inquietar as famílias dos alunos do meu colégio que partiram comigo da Corte para esta vila(…) todos chegaram comigo ontem, sem acidente e de perfeita saúde ao colégio…” Do mesmo modo no período das férias prevenia-se os pais dos alunos que iriam passar as férias na Corte, o dia e horário da chegada no cais da Prainha ou no trapiche Mauá. Quem quisesse mandar encomendas aos filhos anunciavam no jornal a partida para Nova Friburgo de “pessoa de consideração”, empregada do colégio.
O Barão de Tautphoeus, muito míope sempre era visto usando um vidro quadrado que lhe servia de óculos e com um charuto à mão. Publicou ensaios e teses históricas e criticava que os negócios do município interessavam menos que os da província e os da província menos que a política geral. Consagrando a sua longa existência ao ensino, o barão era respeitado tanto pelo seu caráter como por sua vastíssima erudição. Gozando da estima e apreço de mais de uma geração, nos quais contou com numerosos ex-alunos ocupando os mais altos cargos da administração pública ou na política, a exemplo do notável abolicionista Joaquim Nabuco. De acordo com o biógrafo de Joaquim Nabuco, o historiador Ricardo Salles, Nabuco não havia completado oito anos quando a morte de dona Ana Rosa o obrigou, em 1857, a abandonar a privilegiada existência protegida de filho único e juntar-se, na Corte, à família de mais quatro irmãos, onde se sentia como um órfão. Um segundo trauma foi a decisão do pai, em 1859, de enviá-lo a um internato em Nova Friburgo para ser educado juntamente com um irmão no colégio dirigido pelo Barão de Tautphoeus.
O barão exerceu profunda influência sobre Joaquim Nabuco que em sua biografia “Minha Formação” dedica um capítulo ao seu mestre, considerado por ele o mais nobre dos modelos humanos.
“Nenhuma influência singular atuou sobre mim mais do que a de meu mestre, o velho barão de Tautphoeus.(…) ele tinha muitos dos traços socráticos: a coragem fria, a calma imperturbável, a resistência à fadiga, o gosto da palestra, da conversação intelectual, da companhia dos moços, a completa abstração de si, a modéstia, a alegria de viver como espectador do Universo, cedendo sempre todavia aos outros o melhor lugar, o forte espiritualismo, a indiferença pelo ridículo, o respeito da ordem social, quem quer que a encarnasse.(…) Sempre com um grosso volume alemão debaixo do braço, caminhava horas inteiras no mesmo andar, alheio ao mundo exterior(…) Era um homem que sabia tudo. Sua conversação era inesgotável. (…) Era literalmente como um dicionário que a cada instante alguém manuseasse, ou uma enciclopédia que um abrisse no artigo Babilônia, logo outros nos artigos Invasão dos Bárbaros, Adam Smith, Lutero, Hieróglifos, Logaritmos, Amazonas, Arquitetura Gótica, Liberdade de Testar, Raízes Gregas, Papel-Moeda, Culturas Tropicais, Alberto Dürer, Divina Comédia, ao acaso. (…) Ele falava de um modo uniforme, sem ênfase, sem colorido, sem expressão mesmo, mas era um jorrar sem fim de ciência, de erudição, como se naquele mesmo dia tivesse estado a estudar o assunto.(…) Qualquer que seja o assunto de conversa que se procure está sempre no seu próprio terreno e despeja sobre nós tesouros de informações. É como uma fonte de várias bicas, sob as quais basta colocar um cântaro para logo o encher e donde estão sempre a correr jorros de água fresca inesgotável….”
Tautphoeus era um apaixonado pela natureza do Brasil e “Se nós brasileiros pudéssemos ter aquele amor!”, considerou Nabuco. Conforme Nabuco, ao passearem por uma mata nas imediações de sua casa em Paquetá, conforme iam abrindo caminho para passarem Tautphoeus pedia que não tocasse a natureza, que respeitasse o intricado, o selvático, porque aquela desordem era infinitamente superior ao que a arte jamais poderia imitar. O tição na queimada da mata para a cultura do café era para ele como um auto-de-fé da Inquisição. De acordo com Nabuco, Tautphoeus assim se expressou “O incêndio ao lamber essas resinas preciosas, essa seiva, esses sucos de vida, esse sem-número de desenhos caprichosos de artistas inexcedíveis cada um no seu gênero, modelos de cor e de sensibilidade, todos eles únicos, parecia consumir com uma dor cruel, vibrante, todas as suas ligações sensíveis com a natureza…”
Para demonstrar a reputação que gozava o Barão de Tautphoeus, em uma recepção comemorativa da Independência foi organizada uma soirée para homenageá-lo havendo numerosa concorrência de convidados, vários fazendeiros importantes de Cantagalo, médicos, negociantes e professores. Os alunos do Colégio de São Vicente de Paulo dirigidos pelo mestre de música Galiano das Neves tocaram várias peças de música. Além do serviço volante de chá, chocolate e doces foi servida uma lauta ceia para aproximadamente 80 talheres, com variadas iguarias e vinhos finos da Madeira, Bordeaux e Champanhe.
“…como prova bem saliente da verdadeira civilização que julguei digno de publicidade o que presenciei há pouco em Nova Friburgo. Achando-me em 7 de setembro, de passagem nesta vila, fui despertado ao amanhecer por excelente música… soube que eram as bandas de música formadas pelos alunos dos colégios de São Vicente de Paulo e Freese, os quais depois de tocarem os hinos nacional e da independência, e de pronunciarem alguns discursos apropriados à ocasião seguidos de vivas a sua Majestade e a nação, em frente a Câmara Municipal, percorreram a vila tocando várias peças; e rivalizando na boa execução delas infundiram a toda população o entusiasmo e a alegria(…) O Ilmo. Sr. Dr. Carlos Antônio de Carvalho, morador há perto de um ano em Nova Friburgo, onde seus filhos se educam no Colégio de São Vicente de Paulo dedicou uma soirée ao Barão de Tautphoeus(…) e fez esta festa com um luxo que mostra a importância que lhe quis dar. (…) A festa prolongou-se com a maior animação até às quatro ou cinco horas da manhã(…)Ela fez muita honra ao Sr. Barão de Tautphoeus que soube granjear manifestação desta ordem de consideração e de amizade de um pai de seus alunos(…)uma festa dada em honra da educação e das letras, uma festa dada com todo o luxo da mais refinada civilização em um lugar que há meio século era ainda um sertão quase desconhecido e inacessível, é certamente uma demonstração bem lisonjeira do progresso que o Brasil tem feito neste meio século, e por sito creio que ela merece uma menção em suas colunas.” Jornal do Commercio, 21 de setembro de 1861.
No entanto, Francisco Marques de Souza morre de forma inesperada. Nos parece ter sido ele o administrador do internato, enquanto Tautphoeus além de dar aulas no colégio, apenas emprestava a notoriedade de seu nome para atrair as elites. Por isto, com o falecimento de seu sócio, o barão retorna ao Rio de Janeiro e volta a dar aulas no colégio Pedro II, acompanhando-o Joaquim Nabuco. Não sabemos a data de sua partida, mas em 1864 o colégio de Humanidades do Rio de Janeiro já está estabelecido no château, onde abriu uma filial. Logo, Nabuco e seu irmão teriam estudado aproximadamente 5 anos no internato em Nova Friburgo. O colégio de Humanidades, igualmente um internato, encerra suas atividades em Nova Friburgo no ano de 1876, se instalando no château o Liceu Conde D’Eu inaugurado em março deste ano com a ilustre presença do Imperador D. Pedro II. O diretor Guilherme Leocádio Pinto vende o colégio para o pastor luterano Alberto Gaspar Meyer que sob o nome de Liceu Nacional arrenda outro local para a sua instalação. Adotando o regime de internato e externato, de educação religiosa protestante. Meyer era auxiliado pelo seu filho Alberto Meyer e pelo pastor John M. Kyle. O que sabemos é que o château estava fechado há cinco anos quando os Jesuítas arrendaram dos herdeiros de Francisco Marques de Souza, o vetusto prédio estabelecendo o colégio Anchieta.
Hábil na espada e ágil no florete na sua juventude, Tautphoeus foi notícia por ocasião do golpe militar de Proclamação da República. Na manhã histórica de 15 de novembro de 1889, a tropa com o marechal Deodoro da Fonseca à frente, descia a rua do Ouvidor rumo ao Arsenal da Marinha quando foi interpelada. Na porta da Gazeta da Tarde, admirado como todos, o octogenário Tautphoeus indagou aos transeuntes o que ocorria em razão do rumor e correria pelas ruas. Ao saber do golpe da monarquia empalideceu e “respeitador por sistema da ordem hierárquica e da pragmática social” como disse Joaquim Nabuco sobre ele, colocou-se diante dos batalhões que desfilavam e gritou: “Viva a constituição que nós juramos”. Deodoro e os outros oficiais ouviram o protesto ignorando-o, pois, todos reconheceram o provecto professor Tautphoeus, muito conhecido no Rio de Janeiro. Como escreveu Nabuco “partiu talvez o único grito de Viva a Constituição do Império que se ouviu, se alguém o ouviu, tão fraca era já a voz, em 15 de novembro ao desfilar das tropas do general Deodoro pela rua do Ouvidor. Talvez ninguém olharia para o velho que fazia sem medo tal protesto, pensasse que era um protegido do Imperador alucinado pela catástrofe que o tragaria também…” O velho professor faleceu no ano seguinte, em 27 de fevereiro de 1890.
FONTES: NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Domínio Público, Jornal O Globo, 14 de março de 1876 e Jornal do Commercio citados no texto.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora
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