Casa São Vicente de Paulo, rumo aos 90 anos de caridade em Nova Friburgo
A prática assistencial por iniciativa do Estado foi inexistente durante séculos de nossa história. As instituições privadas de fins sociais ligadas à Igreja é que se incumbiam deste protagonismo até quase meados do século 20. Ao Poder Público caberia somente direcionar os esforços de solidariedade da sociedade civil. No Brasil, até 1930, não se via a pobreza enquanto questão social, mas sim, como uma disfunção pessoal dos indivíduos. O atendimento social aos desvalidos era tão somente o encaminhamento aos asilos. A pobreza era tratada como doença. Somente a partir do momento em que o Estado passa a reconhecer a pobreza como questão social é que tomará a sua direção.
A partir da década de 1930, tem início uma política social no Brasil. No entanto, boa parte dos benefícios sociais girava em torno do trabalho formal e como a maior parte da população não possuía vínculo empregatício, restringia-se a poucos o acesso aos direitos sociais. Aos desempregados e aos trabalhadores rurais restava a caridade das instituições filantrópicas. Muitas famílias cristãs abastadas deixavam legados a obras pias sociais em razão da deficiência do Estado em dar conta dos desassistidos.
Em Nova Friburgo, cidade serrana do estado do Rio de Janeiro, a Casa São Vicente de Paulo assim como a Casa Madre Roseli têm origem na caridade das famílias Sertã e Serpa. Josefina Marques Braga Sertã era proveniente de uma tradicional família de Nova Friburgo e habitava uma belíssima residência na Rua General Osório, atualmente a Casa Madre Roseli. De acordo com a memória familiar, Josefina costumava auxiliar Madre Roseli no Colégio Nossa Senhora das Dores, com obras de caridade. Como a demanda era grande, com o passar do tempo o espaço naquele estabelecimento de ensino já não dava conta de abrigar tantas crianças. Com a anuência de seu cunhado Raul Sertã vendeu a residência da família na Rua General Osório a um preço módico a Ordem das Doroteias, para que lá fosse instalado um orfanato para meninas carentes.
A Casa São Vicente de Paulo foi igualmente doação de uma família com parentesco com os Sertã, a família Serpa. Outrora fora a chácara dos Serpa, proprietários de uma fazenda de café em Bom Jardim. A Casa São Vicente de Paulo está localizada no centro da cidade e tem uma mata que se estende até o prédio da Fundação Getúlio Vargas. A chácara tinha uma extensão territorial muito maior e fazia rumo com o colégio Anchieta. Maria Serpa Duarte, conhecida como Dona Sinhá, parece ter sido a última da família a residir na chácara. Como tinha uma filha com problemas mentais fez a doação da chácara a ordem religiosa francesa das Irmãs Trapistas com a condição da guarda e cuidados da menina após a sua morte.
Esta ordem religiosa vivia em regime de austeridade, silêncio, contemplação e sem contado algum com o mundo exterior. Não se sabe por que, mas as Irmãs Trapistas transferiram para as religiosas da Ordem de São Vicente de Paulo a chácara recebida dos Serpa. A Casa São Vicente de Paulo, que a população de Nova Friburgo se habitou a chamar de Casa dos Pobres, inicia suas atividades no ano de 1933, com o acolhimento de idosos. Já na década de 1950 passa a receber pessoas com necessidades especiais. Por ter se estabelecido em uma chácara, o asilo era inicialmente autossuficiente. Tinha plantações de milho, horta, criação de pequenos animais, gado e muitas fotografias mostram as freiras em uma labuta diária na propriedade.
Os padres jesuítas do Colégio Anchieta auxiliavam na provisão de mantimentos, reforçando a alimentação dos acolhidos. Em 18 de fevereiro de 1936 foi inaugurado o hospital de tuberculosos da Marinha estabelecida em Nova Friburgo, que passou a ser conhecido como Sanatório Naval. Uma prática muito comum nos sanatórios eram irmãs de caridade serem cooptadas para auxiliarem nestes estabelecimentos. Em 1941, a freiras da Ordem de São Vicente de Paulo passam a se ocupar no Sanatório Naval dos serviços de lavanderia, cozinha e igualmente assistência espiritual dos praças e oficiais tuberculosos, na ocasião conhecidos como tísicos. Na Santa Casa de Misericórdia, que antecedeu o atual hospital regional Raul Sertã como estabelecimento de saúde, estas religiosas auxiliavam na hotelaria.
Fazendo uma análise do acervo fotográfico da Casa São Vicente de Paulo, algumas legendas indicam que foram tiradas na década de 1930, ou seja, nos primeiros anos de funcionamento do asilo. Nas imagens existem muitos idosos da raça negra que tinham naquela década uma faixa etária entre 80 e 90 anos. Logo, tudo indica que estes idosos eram ex escravizados. No ano de 1935, por exemplo, dois anos depois que o asilo foi aberto, alguns destes idosos acolhidos eram octogenários, e isto significa que nasceram na década de 1850, quando o modo de produção na economia nacional era o trabalho escravo.
É notório em nossa história que o governo da Primeira República não se ocupou com a inserção dos ex escravizados na sociedade, deixando-os abandonados e vulneráveis, já que a maior parte não tinha família e sequer uma rede de sociabilidade. O fato das Irmãs Vicentinas terem acolhido estes desvalidos corrobora ainda mais com a importância histórica deste estabelecimento. No ano que vem, ao completar quase um século de serviços de caridade prestados aos desamparados e aos enfermos, a Casa São Vicente de Paulo merece nossa gratidão e homenagem.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora
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