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Carro de boi, o velho e fiel companheiro de trabalho

Carro de boi, o velho e fiel companheiro de trabalho. Na história da humanidade, desde as primeiras civilizações, o carro de bois era indispensável na lavoura, na lavragem da terra atrelado à charrua, bem como no transporte de materiais pesados. Na Grécia Antiga não se admitia matar o boi de lavoura e as leis atenienses puniam o bovicídio duramente. O vetusto carro de bois foi trazido pelos portugueses sendo o primeiro veículo a rodar no Brasil Colônia. Carreava materiais de construção para o levantamento das primeiras vilas, para edificação de moradias, capelas, fazendas e para fazer estradas. Transportava madeiras longas e pesadas e grandes blocos de pedra.

Junta de bois transportando pedras de uma pedreira. Jean-Baptiste Debret. Acervo BN.
Junta de bois transportando pedras de uma pedreira. Jean-Baptiste Debret. Acervo BN.

Conduzia do litoral para os povoados as mercadorias que vinham de além-mar e igualmente carregavam para os portos de embarque toras de pau brasil e caixas de açúcar. Não se pode pensar em cultura canavieira ou na indústria do açúcar no Brasil sem associar a presença dos rudes veículos tirados por bois. Traziam a cana dos canaviais para os picadeiros dos engenhos e para as moendas. Transportavam a lenha das florestas para as suas fornalhas e igualmente levavam as caixas de açúcar dos tendais para os mercados ou portos de embarque. O carro de duas rodas, tirado por bois, abriria com suas rodas maciças os primeiros caminhos, desde as matas litorâneas até o sertão. Na paisagem rural, ouvia-se a cantiga dolente do ranger do carro, o apeiramento da boiada mansa e resignada.

Os carros de boi traziam a cana para os picadeiros dos engenhos. Acervo pessoal.
Os carros de boi traziam a cana para os picadeiros dos engenhos. Acervo pessoal.

Rústico, pesado, vagaroso, mas seguro e resistente, o carro de bois ocupa lugar preeminente entre os instrumentos de trabalho no Brasil transportando, ligando, aproximando e servindo ao progresso da Colônia. Missas, novenas, romarias, casamentos, batizados, crismas, enterramentos, folguedos populares, em tudo esteve presente o carro de bois servindo no transporte de pessoas. Foram utilizados na Guerra do Paraguai transportando armas, petrechos, munições, alimentos e transformando-se às vezes em ambulâncias improvisadas para doentes e feridos nas batalhas.

Carro de boi no engenho de cana em Itaocara, RJ. Acervo pessoal.
Carro de boi no engenho de cana em Itaocara, RJ. Acervo pessoal.

No Brasil havia vários tipos de carros de bois, distintos entre si por certas peculiaridades regionais de construção, como os carros do tipo mineiro, paulista e nordestino. Quanto à rodagem, podem ser classificados pelo número de rodas, pela sua estrutura e pelo eixo. Os carros de duas rodas são os mais comuns. Quanto ao tiro, ou seja, quanto ao número de animais que puxam os carros há no Brasil carros puxados por um só boi, chamados de carroça de bois; carros puxados por dois bois, formando uma junta ou parelha; e finalmente carros puxados por quatro ou mais bois, formando duas, três, quatro e mais juntas. O boi de carro é o touro castrado. No Estado do Rio de Janeiro a boiada do carro compõe-se normalmente de três e quatro juntas. O canto dos carros, carro-gemente, carro-cantante é uma de suas particularidades. Os carros cantam, chiam, gemem, estridulam, guincham, rangem, rechinam, retinem, rincham e zunem.

Na paisagem do Brasil Colonial trotando à frente dos bois, era comum avistar o carreiro de pés no chão, calças de algodão regaçadas pelas canelas, a camisa entreaberta, o chapéu de palha ou couro e vez em quando ferretoando com a ponta de ferro das aguilhadas, as juntas de boi. Amansar bois de carro é uma das tarefas mais árduas dos carreiros, exigindo perícia e paciência. O trabalho de dirigir, guiar e manobrar o carro de bois é executado pelo carreiro, que às vezes fabrica a sua própria canga. Leva-se dois dias para fazer uma canga elaborando o canzil, o “tamboeiro” utilizando a madeira é o “bico de pato”, que é mais macia.

Junta de bois no transporte mantimentos. Jean-Baptiste Debret, 1835. Acervo BN.
Junta de bois no transporte mantimentos. Jean-Baptiste Debret, 1835. Acervo BN.

Já o ajudante, geralmente um menino é chamado de candeeiro que guia a junta de bois   pela estrada mostrando o caminho. Na lida com os animais é importante destacar a maneira pela qual os carreiros se comunicam com as juntas de bois para obter obediência. Para tanto, usam uma linguagem ou gestos típicos que os animais entendem como que por encanto. Vem cá! Vamo! Eia! Aêêêê! Vão bora vão! O carreiro precisa ser permanente para conhecer os bois e estes a ele. Não se pode lidar com bois tendo cada mês um carreiro diferente. Basta a voz do carreiro chamando os bois pelos nomes e a junta obedece.

Localizei esta junta de bois no distrito de Boa Sorte, em Cantagalo. Acervo pessoal
Localizei esta junta de bois no distrito de Boa Sorte, em Cantagalo. Acervo pessoal

Entrevistei Antônio Klein, produtor rural de Barra Alegre, distrito de Bom Jardim(RJ). Planta inhame, batata doce, couve-flor e trabalhou com “boi de carro” durante 24 anos. Exercendo a função de carreiro, me disse que quando se escolhe um boi para o carro, desde o momento em que se coloca a canga nele, sabe-se se vai trabalhar ou não. Se ele rejeitar a canga não adianta insistir pois vai se machucar tentando retirá-la. Na realidade tem que colocar a canga aos poucos, em um dia somente uma hora, outro dia não coloca e assim o animal vai aceitando a canga às poucos. Só de olhar o boi sabe qual vai aceitar a canga, “é o traquejo de trabalhar com o bicho”, declara.

Antônio Klein à direita, ao lado de Zé do Boi. Acervo pessoal.
Antônio Klein à direita, ao lado de Zé do Boi. Acervo pessoal.

Segundo Antônio Klein na lavoura o “boi de carro” puxa madeira do mato, ara e gradeia a terra, faz vala para plantar inhame, batata doce, capim, “rasta terra na carroça”. Em determinado terreno o boi faz o que a máquina não faz, como por exemplo entra no meio do mato para tirar uma tora de eucalipto de 200 kg. Segundo ele, somente uma junta de 2 bois puxa 800 kg e uma junta pode ter de 2 a 16 bois. Existe o “boi de guia” que faz os outros o seguirem. Como se torna “boi de guia”, indaguei. Klein respondeu que na primeira vez que se coloca a canga já se sabe se ele vai ser um “boi de guia” ou “boi de coice”. O primeiro animal olha para lados, vê para onde segue, já o “boi de coice” somente arremeda, não tem muita atenção.

Carro de boi levando uma carga para a estação de trem. Acervo RFFSA.
Carro de boi levando uma carga para a estação de trem. Acervo RFFSA.

A sociedade de proteção dos animais entende que boi de carro deveria ser extinto, em razão dos maus tratos. Mas os lavradores da região serrana fluminense argumentam que o trator jamais irá substituir os carros de boi na aragem da terra. Como existem na serra muitos morros, com terrenos muito íngremes e poucas vargens, o uso do boi de carro é indispensável. A utilização de trator provoca a erosão dos morros diferente da junta de bois que ara a terra “correndo na leira”, em curva de nível. Klein admite que no passado acontecia realmente muita crueldade com os animais colocando-os para trabalhar durante muitas horas. Na sua opinião “colocar um boi na canga por mais de 4 horas por dia é covardia” e afirma que nunca maltratou seus animais, pois sabe de seus limite.

Os carros cantam, chiam, gemem, rangem,  rincham, zunem etc. Acervo pessoal.
Os carros cantam, chiam, gemem, rangem,  rincham, zunem etc. Acervo pessoal.

Apesar do progresso no campo dos transportes e da campanha contra o velho e moroso carro puxado por bovinos, representante de uma época atrasada, do passado colonial, as juntas de bois ainda são utilizadas nas atividades agrícolas de pequenos produtores rurais na aração da terra, principalmente nos morros onde os tratores são proibidos. Na segunda metade do século 18, passou a ter a concorrência das tropas de mulas que seria o principal meio de transporte de mercadorias nos séculos seguintes. Em algumas partes do país, em razão da falta ou precariedade dos caminhos, notadamente nas serras, adotou-se o transporte por mulas, burros e jumentos. E assim, os carreiros foram sendo substituídos pela figura estoica do tropeiro.

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Janaína Botelho – Serra News

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