Botica doméstica no passado: a horta de dona Zali em Nova Friburgo
Instalando-se para ficar definitivamente no Brasil, o colonizador português recriou o ambiente familiar de seu torrão cercando-se de curral, quintal e horta. A disposição e variedade da horta lusitana introduzida no Brasil indica sua preferência pelos legumes e hortaliças. Fui até o distrito de São Pedro da Serra, em Nova Friburgo, conhecer a horta de Dona Zali. Ela vende hortaliças para a comunidade local colhidos direto de sua horta, à escolha do freguês. Filha de Joaquim Albino Barroso e de Fany Caroline Gracini, Zali e seus onze irmãos nasceram na Bocaina dos Blaudt, naquele mesmo distrito. Aprendeu com a mãe e a avó as propriedades medicinais das plantas e hortaliças. Percebi que ela possui uma verdadeira farmácia em sua horta, uma botica, como se dizia no passado.
Na Antiguidade, os egípcios faziam a ligação entre a dietética e a gastronomia, sendo grandes conhecedores da farmacopeia e das propriedades das ervas medicinais. Na composição das carnes gordurosas usavam hortaliças para minimizar os efeitos nocivos. No cozimento da carne de ganso, por exemplo, utilizavam o funcho, que ajuda na digestão, combate colites, assim como a chicória, rica em substâncias depurativas. A maioria das plantas, frutas e ingredientes empregados na alimentação são citados também nos livros de remédios dos médicos egípcios.
O cronista Arthur Guimarães que visitou Nova Friburgo no início do século 20 escreveu que as residências da cidade serrana possuíam hortas em seus quintais onde plantavam couve, vagem, alface, mostarda, acelga, salsa, cebola verde, ervilha, berinjela, jiló, maxixe, quiabo, tomate, cenoura, nabo e repolho. Em razão desta autossuficiência de boa parte dos lares friburguenses, Guimarães comentou ser desolador não haver nos quitandeiros sortimento de verduras e legumes. Na horta de Dona Zali verifiquei uma particularidade. Existe um tipo de hortaliça, de legume e de fruta consumidos no passado, que por falta de comercialização no mercado estão desaparecendo. São eles a azedinha, muito boa para o sangue, o tomate dos índios ou tomate da Índia, bom para a próstata e a uvaia, uma frutinha pequena de cor amarela e dá um suco muito saboroso e nutritivo.
Fui percorrendo a horta de Dona Zali e indagando sobre as propriedades medicinais das plantas. Segundo ela, o funcho é ótimo para a cólica de crianças recém-nascidas e pode-se usar a folha ou a semente seca. Alecrim é bom para sinusite, fazer inalação e também para depressão. Arruda serve para a reza e inflamação na vista. Para que sofreu uma pancada ou torção faz-se um emplastro de saião socado com sal e põe-se a mistura na parte do corpo dolorida. Pode ser igualmente bebido fazendo-se um xarope, para quem tem bronquite. Hortelã é calmante e bom para quem tem verme. Dona Zali tomava leite com hortelã, pois no passado os vermes eram muito comuns entre as crianças. O chá do alho que planta também é bom para os vermes, assim como a erva de Santa Maria com óleo de rícino. Quanto a marcela branca, o chá da folha é bom para indigestão. Erva doce é um calmante e bom para intestino preso. Malva para dor de dente, gengiva e um excelente anti-inflamatório.
O pé de fumo é ideal para banhar erisipela e para combater as pragas na lavoura. Pegam-se as folhas e põem-nas em um latão com água deixando de molho por três dias. Com essa mistura pulverizam-se as hortaliças para matar as pragas. Com a folha do alevante faz-se o xarope e é muito bom para quem tem problema de pulmão, tosse e principalmente para os bebês. Uma dica é a erva-macaé que as pessoas idosas devem tomar diariamente. Assim fazia a sua mãe e aprendeu com ela. Macera-se a erva-macaé, adiciona-se um copo d´água, coa-se e bebe-se a mistura. É bom para tudo! Já a raiz da salsinha seca ou fresca é boa para os rins. Dona Zali me deu uma receita completamente inusitada para se preparar a couve. Lava-se a couve, seca-se bem e coloca-a no forno a uma temperatura de 160 graus. Após adiciona-se sal a gosto e ela fica crocante e deliciosa.
No passado eram mais consumidos legumes como abóbora, aipim, inhame, batata doce e eventualmente a batata inglesa. Parece-nos que as hortaliças passaram a fazer parte do cardápio no estado fluminense mais amiúde a partir de meados do século 20, possivelmente pela influência de imigrantes japoneses que introduziram técnicas de cultivo tornando a produção de hortaliças mais rentáveis. Uma das coisas que me surpreendeu na horta de dona Zali foi a altura de um arbusto de café. Sua estatura era imensa como jamais havia visto em plantação desta natureza. Fui então pesquisar e tomei conhecimento que no século 19 os arbustos de café eram podados para ficar na altura média de um escravo para facilitar a colheita. Muito interessante também é o jacá de bambu feito pelo marido de Dona Zali para transportar alimentos.
Dona Zali também faz sabão em casa como faziam a sua mãe e a sua avó. Ela fabrica sabão cada vez que acumula três garrafas grandes de refrigerante contendo óleo usado que ganha dos vizinhos. Ela me disse como é a receita. Coloca-se uma porção de cinza de fogão à lenha sobre um saco de estopa e vai jogando água fervendo sobre essa cinza, como se coa o café. Esta mistura de cinza com água denomina-se barrela. Adiciona-se a barrela ao óleo e bate-se essa mistura até engrossar e dar o ponto de sabão, que é exatamente quando o óleo desaparece. Pode-se acrescentar óleo de eucalipto à mistura para o sabão usado na higiene pessoal. No passado, ao invés de óleo era usado “fato”(tripa) de boi. Refogava-se o “fato” e ia-se jogando a barrela por cima. Zali Barroso Leal está cadastrada no ponto de cultura da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro pela sua sabedoria no manuseio de plantas com qualidades medicinais.
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