Em Cantagalo, o filho desconhecido do Barão Langsdorff
Uma história que envolve aventura, ciência, arte, tensões, tragédia e relações familiares. O protagonista é o cientista Langsdorff que deixou um dos mais valiosos legados para a história do Brasil. Georg Heinrich Von Langsdorff, conhecido na Rússia como Grigory Ivanovitch Langsdorff, nasceu em Wollstein, na Alemanha, em 18 de abril de 1774, e faleceu em 29 de junho de 1852, com 78 anos em Freiburg, cidade daquele mesmo país. Estudou ciências naturais e medicina na universidade de Göttingen se tornando membro da Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo e de inúmeras sociedades científicas de diversos países recebendo os títulos de conselheiro, cavaleiro e comendador. O barão Langsdorff chegou ao Brasil em 1803 e anos depois se torna Cônsul-Geral da Rússia no país. Falava fluentemente sete idiomas, entre eles, o português.
Langsdorff inicialmente se ocupara do assentamento de colonos germanos antes mesmo que colonos suíços e alemães se estabelecessem na vertente da serra da Boa Vista que daria origem ao município de Nova Friburgo. Em 1816 adquire a Fazenda da Mandioca, para dar início ao estabelecimento de uma colônia agrícola com alemães. Esta propriedade ficava situada ao pé da Serra da Estrela, continuação da Serra dos Órgãos, no município de Inhomirim, junto à antiga “Estrada do Proença” que ligava o Porto da Estrela ao alto da serra, atualmente município de Petrópolis, também conhecida na historiografia fluminense como o “Caminho Novo das Minas”, nos informa o pesquisador Francisco Tomasco de Albuquerque. Na Fazenda da Mandioca introduziria técnicas agrícolas e industriais europeias e um modelo de trabalho livre e remunerado em substituição ao trabalho escravo, para servir de referência ao país.
Langsdorff recebeu colonos alemães agricultores, artesãos, marceneiros, carpinteiros, construtores de moinho, ferreiros, carvoeiros, pedreiros, alfaiates, saboeiros, cirurgiões e guarda-livros originários em sua maioria da cidade de Lahr, na Alemanha. Por questões disciplinares, alguns foram excluídos ainda no porto do Rio de Janeiro e dos 94 que desembarcaram, 85 se dirigiram para a Fazenda da Mandioca. Não obstante inúmeros pedidos de ajuda financeira às autoridades nacionais, Langsdorff teve que colocar recursos próprios usando uma herança legada de seu tio. Na colônia agrícola modernizou os engenhos de farinha e milho, construiu olarias e adepto da policultura cultivava café, mandioca, milho, batata, índigo e noz moscada. D. Pedro I visitou a propriedade assim como diversos viajantes e cientistas. Ao mesmo tempo em que se dedicava a administração da colônia agrícola, Langsdorff mantinha suas atividades como cônsul, se dedicava aos estudos científicos e preparava sua expedição exploratória ao Mato Grosso, Amazônia, Pará, Peru e Venezuela, com o apoio financeiro do governo russo.
Possivelmente em razão da pouca dedicação à colônia agrícola ocorreu um descontentamento entre os colonos culminando com atos de rebeldia. Langsdorff solicita a José Bonifácio a anulação dos contratos, pleiteia o mesmo apoio dado aos colonos suíços de Nova Friburgo e ainda a transferência de alguns destes para a Fazenda da Mandioca. O seu colaborador, o geógrafo e astrônomo russo Néster Gravílovitch Rubtsov chegou a elaborar em 1822 um mapa da sede da vila de Nova Friburgo, provavelmente para copiar o projeto. No entanto a colônia agrícola da Fazenda da Mandioca se desfez em 1826, foi desapropriada e em seu lugar construída a Real Fábrica de Pólvora da Estrela. Mas Langsdorff, o incansável cientista e empreendedor tinha um projeto muito mais ousado. Objetivava realizar expedições exploratórias e científicas destinadas ao estudo da natureza, das populações e da economia brasileiras.
Nestas expedições reuniu coleções etnográficas, herpetológicas, ornitológicas, amostras de minerais, coleções de plantas com cerca de 100 mil exemplares da flora tropical, centenas de objetos indígenas, mapas, documentos e desenhos ilustrando as regiões por onde passava. Estas peças foram analisadas e comentadas em mais de mil páginas manuscritas com observações diárias dos membros da expedição sobre geografia, zoologia, comércio, estatística, economia, história, linguística e vias de comunicação do interior do país. Nas expedições acompanhou-o o botânico Ludwig Riedel, os desenhistas Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence, entre outros colaboradores técnicos. No entanto, tragicamente Langsdorff contraiu malária na Amazônia em 1828, se desdobrando em tifo cerebral, que causou a perda de sua memória impedindo-o de dar continuidade às explorações científicas. Os manuscritos, as iconografias e as amostras reunidas por Langsdorff foram remetidas para a Rússia e arquivados na Academia de Ciências de São Petersburgo.
Sua vida pessoal foi tão conturbada quanto a profissional. Langsdorff teve o primeiro filho com uma mulher desconhecida sendo pai solteiro de Karl Georg Von Langsdorff, nascido em 1809, na Alemanha. Casou-se em 22 de setembro de 1812 em primeiras núpcias com Friederike Luise Von Schubert em São Peterburgo, na Rússia. O seu sogro era conselheiro do Czar Alexandre I na Corte russa. Desta união teve duas filhas, Wilhelmine, Elise e supostamente Heinrich Ernst, todos nascidos no Brasil. Como Friederike não se adaptou ao clima tropical retornou com suas filhas para São Petersburgo, divorciando-se de Langsdorff, que ficou com o menino no Brasil.
Em razão de uma viagem a Rússia para obter mais recursos junto ao Czar para a 3° grande expedição Langsdorff deixou Heinrich Ernst, com apenas 4 anos idade, aos cuidados do pastor da Igreja Luterana de Nova Friburgo, Friedrich Oswald Sauerbronn, que tinha numerosa prole. Sauerbronn era guia espiritual dos colonos alemães estabelecidos em Friburgo desde 1824, que por determinação de D. Pedro I, vieram substituir os suíços que haviam deixado a colônia. Nesta viagem ao exterior Langsdorff casa-se em segundas núpcias na Alemanha em 1821 com sua prima Wilhelmine, nascendo desta união Georg, Wilhelm, Alexandrine, Heinrich e Adolph Wilhelm, a maioria nascida no Brasil. Foi nesta ocasião que cooptou colonos alemães na cidade de Lahr para o seu projeto na Fazenda da Mandioca. De toda a sua prole o que nos interessa neste artigo é Heinrich Ernst, seu único filho que permaneceu no Brasil.
Heinrich Ernst nasceu no ano de 1816, provavelmente no Rio de Janeiro, mas não há informação segura sobre a maternidade do menino. O genealogista Francisco Albuquerque entende ser ele provavelmente filho da primeira esposa, Friederike Schubert. Já a genealogista Maria Tânia Gerk Naegle é de opinião que Heinrich pode ser filho de outra mulher, não obstante ser possível que ele tenha nascido entre as duas irmãs. Naegle não conseguiu localizar a certidão de nascimento, casamento ou óbito de Heinrich Ernst, por isto, não arrisca afirmar ser ele filho do primeiro matrimônio de Langsdorff. Foi localizado na igreja Luterana de Nova Friburgo apenas sua certidão de crisma, mas neste documento existe apenas o nome do pai. Como Friederike Schubert seguira apenas com as duas filhas do casal para a Rússia, realmente suscita dúvida sobre a maternidade do menino.
Heinrich Ernst casou-se com Elvira Antônia de Roure em 1855, nascida em Lumiar, distrito rural de Nova Friburgo, sendo os de Roure membros da elite local. O dote deixado por Langsdorff com o pastor Sauerbronn para Heinrich lhe foi entregue por ocasião de seu casamento. Com este dinheiro Heinrich adquiriu um belíssimo sobrado em Cantagalo na freguesia de Santa Rita do Rio Negro, hoje distrito de Euclidelândia, se estabelecendo como negociante. Como era comum na época residia na parte superior e no rés do chão ficava o seu comércio. O imóvel ficou conhecido como “sobrado azul” e de acordo com Tânia Naegle data do final do século 18, um preciosíssimo patrimônio histórico de Cantagalo, muito bem conservado até hoje. Sabe-se que alguns Sauerbronn mudaram para Cantagalo, logo, tudo indica que Heinrich seguiu o mesmo caminho dos membros desta família.
O almanaque Laemmert confirma a sua presença na região nos anos de 1855 e 1863 como negociante, proprietário e destaca que tinha uma padaria. O casal Heinrich e Elvira tiveram 5 filhos sendo eles Ângela Cândida, José Henrique, Elvira Frederica, Maria e Guilherme Gustavo. A trineta de Heinrich Ernst, Tânia Gerk Naegle, localizou no livro tombo de Santa Rita do Rio Negro diversos matrimônios de famílias de escol em que o seu trisavô foi padrinho, demonstrando com isto o seu prestígio naquela localidade. Vamos entender por que o filho do barão Von Langsdorff deixou Nova Friburgo para se estabelecer notadamente na freguesia de Santa Rita do Rio Negro, onde deitou raízes.
A ocupação de Cantagalo, região conhecida como sertões do Macacu e que fazia parte do município de Santo Antônio de Sá, ocorreu em razão da exploração de ouro nos córregos dos rios Grande e Negro, no último quartel do século 18. Inicialmente foi uma garimpagem clandestina praticada por Manoel Henriques, o Mão de luva, e o seu bando. Após a sua prisão foram distribuídas sesmarias a indivíduos da província de Minas Gerais, Ilha da Madeira e Açores para se dedicarem a atividade mineradora, pagando os devidos impostos. Revelando-se com o passar do tempo infrutífera a garimpagem de ouro, os beneficiários das terras voltaram sua atividade econômica na produção de alimentos e posteriormente no cultivo de café. O arraial das Novas Minas de Cantagallo é elevado à categoria de vila em 1814, com a denominação de São Pedro de Cantagalo, emancipando-se de Santo Antônio de Sá.
Sua importância era tal que em 1818, Cantagalo foi escolhido para abrigar uma colônia de suíços, desmembrando-se um território junto a serra da Boa Vista para formar o município de Nova Friburgo. No século 19, durante sete décadas, o plantio de café seria a economia dominante em Cantagalo, chegando o município, por alguns anos, a superar a produção de todos os outros municípios da província fluminense. O surgimento de uma aristocracia agrária aliada a influência política elevou Cantagalo em 1857 à categoria de cidade. Aproximadamente dezenove cantagalenses ou moradores de Cantagalo ligados à produção e comércio do café foram agraciados com títulos nobiliárquicos até o advento da república. O mais importante entre eles foi Antônio Clemente Pinto, o primeiro barão de Nova Friburgo. Com uma economia baseada no modo de produção escrava, de acordo com a historiadora Emília Viotti da Costa em 1850, Cantagalo será um dos distritos cafeeiros mais importantes do Rio de Janeiro, com 9.850 escravizados. Menos de sete anos depois, as estatísticas registravam um total de 19.537 escravizados e, em 1873, de 35 mil. A estação de trem em Santa Rita do Rio Negro(Euclidelândia) inaugurada em 1878 é reflexo do desenvolvimento desta freguesia.
Santa Rita do Rio Negro em 1842 de curato se torna por decreto provincial freguesia, o que denota significativa atividade econômica e aumento da população. Posteriormente outras freguesias vão se formando como São Sebastião do Paraíba, Santa Rita da Floresta e Boa Sorte, limitando-me apenas aos distritos que existem atualmente. Eram importantes unidades de produção de café em Santa Rita do Rio Negro a Fazenda de Areias, Fazenda São Clemente, Fazenda Bemposta, Fazenda Boa Sorte, Fazenda Canaã, Fazenda de Itaoca, Fazenda de Água Quente, São Bartolomeu, Fazenda Mont Vernon, Fazenda Santa Rita, Fazenda do Sossego, Fazenda Pouso Alegre, Fazenda Santa Thereza, Fazenda Sant’Anna de Pouso Alegre. Atualmente algumas pertencem ao distrito de Boa Sorte criado em 1924, com terras desmembradas de Santa Rita do Rio Negro.
Nesta relação pertenciam ao Barão de Nova Friburgo as fazendas Areias, Itaoca, Água Quente, Boa Sorte e Santa Rita. Já a São Clemente pertencia ao seu tio João Clemente Pinto. Logo, Heinrich Ernst se estabeleceu como negociante na região mais próspera de Cantagalo, onde um dos homens mais ricos no Império, o Barão de Nova Friburgo, tinha suas principais unidades de produção de café. Quando o filho de Langsdorff abriu o seu negócio não vivíamos mais no tempo da autossuficiência das fazendas, em que se adquiria apenas sal e pólvora. Tudo leva a crer que o comércio de Heinrich era bem afreguesado.
A descendência Heinrich Ernst Von Langsdorff foi magistralmente pesquisada por Francisco Tomasco de Albuquerque, que resultou no livro “A Descendência Brasileira de Georg Heinrich Freiherr Von Langsdorff. Subsídios Genealógicos à Historiografia Fluminense”. Quem igualmente o auxiliou nas pesquisas foi a genealogista Maria Tânia Gerk Naegle, como dito antes, trineta de Heinrich Ernst. O sobrado histórico do século 18, residência e estabelecimento comercial de Heinrich fora vendido a terceiros, mas em 1959 retornou ao patrimônio dos Naegle, que tem relação familiar com os Langsdorff. O imóvel histórico conhecido como sobrado azul foi restaurado e curiosamente os restauradores não localizaram o tom azul na alvenaria, nas janelas ou nos portais, mesmo tendo sido removidas seis camadas de tinta.
Todo este enredo vem tendo um feliz desdobramento. Tive o prazer de conhecer no ano passado Wolfgang Müller, um entusiasta da história de Georg Heinrich von Langsdorff. Müller é doutor em economia, membro da Sociedade Brasil-Alemanha em Berlin e trabalhou como adido econômico na embaixada da Alemanha em Brasília. Foi prefeito da cidade de Lahr no período 1997-2019, exercendo ainda diversos cargos políticos. Foi em Lahr que residiu a família de Langsdorff e onde ele viveu um período de sua juventude, mantendo sempre contato com os familiares desta cidade quando residia no exterior. Existe em Lahr uma rua denominada “Langsdorff Straße”. Outro fato interessante ligado a Lahr foi que em 1822, Langsdorff levou 84 colonos desta cidade e da região para a Fazenda Mandioca. De acordo com Müller “A emigração de colonos de Lahr para o Brasil diz muito sobre a situação econômica e social no século 19 na nossa região e da Alemanha em geral”.
Conhecendo o trabalho científico de Langsdorff, notadamente de suas expedições ao Brasil, Müller se encantou pela história de seu conterrâneo que viajou com desenvoltura pelo mundo afora, cujo resultado de suas pesquisas estabelece um elo entre a Alemanha, a Rússia e o Brasil. Müller veio da Alemanha no ano passado ao Brasil para conhecer a Fazenda da Mandioca guiado por João Vieira, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Itaboraí. Percorreu também o “Caminho Novo das Minas” com Hugo Vocurca e escreveu dois artigos para os jornais Lahrer Zeitung e Badische Zeitung sobre a sua “expedição”. Esteve em Nova Friburgo quando encontrei-me com ele e nesta ocasião fiz-lhe a doação do livro de Albuquerque. Ainda neste semestre Müller pretende retornar ao Brasil para conhecer os descendentes do filho brasileiro de Georg Heinrich Von Langsdorff e igualmente Euclidelândia. A Escola de Samba Estácio de Sá, em 1994, teve como enredo “Langsdorff, um delírio na Sapucaí”, homenageando aquele que foi o cientista que melhor retratou a natureza, população e cultura do Brasil.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora universitária
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