Os anos dourados no Colégio Nossa Senhora das Dores
O Colégio Nossa Senhora das Dores, ligado a Congregação das Irmãs de Santa Doroteia de Francinetti se estabeleceu em Nova Friburgo no ano 1893, dentro de um contexto em que o município gozava da notoriedade de ter abrigado os melhores estabelecimentos de ensino do país durante o Império. Em meados do século 19 se instalaram na vila serrana o Instituto Colegial Freese, do inglês John Henry Freese e o Colégio São Vicente de Paulo, que por um período foi dirigido pelo bávaro Barão de Tautpheus, considerado uma enciclopédia ambulante por seus contemporâneos e citado por seu aluno Joaquim Nabuco no livro “Minha Formação”. Já o Colégio Anchieta se instalara em 1886 em Nova Friburgo, quando o Instituto Freese e o São Vicente de Paulo já haviam encerrado suas atividades. Foi o padre reitor do Colégio Anchieta, Luiz Yabar, quem sugeriu a vinda do Colégio Nossa Senhora das Dores para Nova Friburgo, pois se fazia necessário um educandário religioso para a formação de moças. Os colégios religiosos particulares tradicionalmente não admitiam a mistura de alunos de sexos diferentes.
A Congregação das Irmãs de Santa Doroteia foi criada pela genovesa Paola Francinetti em 1834, objetivando a educação de meninas. Paola Francinetti foi posteriormente canonizada e reconhecida como santa pelo Vaticano. Esta congregação abriu várias escolas em Roma e além da Itália se instalou na Inglaterra, Suíça, Ilha de Malta e Portugal. Aceitando o convite do bispo de Recife para instalar um colégio naquela província, em 1866 vieram as primeiras seis irmãs e quase três décadas depois, como dito antes, instalaram um colégio em Nova Friburgo. Sabe-se que começaram a funcionar na vila serrana numa casa em frente a uma grande praça, que possivelmente é a atual Praça Getúlio Vargas. Com a falência do Instituto Sanitário Hidroterápico construído pelo médico Carlos Eboli, no ano de 1897 o complexo de prédios deste instituto foi adquirido pela congregação. O Hotel Central que pertencia ao instituto, um belíssimo prédio no estilo neoclássico, passou a abrigar o colégio.
Como as freiras recebiam muitas alunas internas sob o regime de “pensão”, não foi difícil adaptar o hotel para um internato. Do profano ao sagrado, o salão onde ocorriam as soirées e se dançavam valsas, mazurcas e quadrilhas se transformou na capela do colégio. Funcionando com o sistema de internato e externato, a inovação foi a introdução do que seria hoje o ensino secundário, que até então inexistia no município para as moças. As alunas internas eram geralmente filhas de fazendeiros dos municípios de Cantagalo, Bom Jardim, Santa Maria Madalena, entre outros. No início as professoras eram somente as freiras e todo o serviço como refeições, lavanderia e limpeza era feito pelas religiosas, nos informa a Irmã Celma Calvão da Silva, diretora do colégio. Havia casos de famílias friburguenses que optavam pelo internato, a exemplo dos Spinelli. Geralmente as famílias que tinham uma ou duas meninas e vários meninos preferiam colocá-las no colégio interno para que tivessem gestos mais femininos e não sofressem influência dos garotos. Entrevistei algumas ex-alunas dos “anos dourados”, mas antes vamos entender um pouco sobre este período da década de 1950.
Na ideologia dos anos dourados, a vocação para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas da feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. Considerado o mais próximo da função de mãe, o magistério era o curso mais procurado pelas moças. No entanto, nem todas exerciam esta profissão ao se formarem. Muitas contentavam-se apenas com o prestígio do diploma e a cultura geral adquirida na escola. Era muito comum entre as mulheres que trabalhavam interromper suas atividades com o casamento ou a chegada do primeiro filho. Esperava-se que as mulheres de classe média se dedicassem inteiramente ao lar e fossem sustentadas pelo marido.
Havia distinção entre as moças de família e as levianas. Na mentalidade da época a moça leviana era a garota fácil, que permitia beijos ousados, abraços intensos e que poderia até chegar à intimidade física. Com elas os rapazes namoravam, mas não se casavam. Eram raros os rapazes que admitiam a ideia de se casarem com uma moça deflorada por outro. No código civil de 1916 estava prevista a possibilidade de anulação do casamento caso o recém-casado constatasse que a moça não era virgem. Já as moças de família eram as que se portavam corretamente, dando-se ao respeito de modo a não ficarem “mal faladas”. Tinham gestos contidos, conservavam sua inocência sexual mantendo-se virgem até o matrimônio. Seria muito prejudicial aos seus planos de casamento a fama de leviana, namoradeira, vassourinha ou maçaneta, que passa de mão em mão.
Era grande o medo dos pais e dos educadores que as mocinhas se desviassem do bom caminho e a vigilância sobre elas se fazia necessária, controlando inclusive as suas leituras. O ideal era que as moças só andassem com os namorados na companhia de uma amiga, irmão ou parente, os chamados “seguradores de velas”. A iniciativa da conquista e declarações de amor cabia apenas ao homem. Era fundamental que desde os primeiros encontros a moça deixasse claro para o rapaz que era moça de família. Além disto, não deveriam perder tempo com namoros que não as conduzissem ao matrimônio.
Não se casar significava fracassar socialmente. O grande medo da maioria das moças era ficar solteira. Uma mulher com mais de 20 anos de idade sem a perspectiva de um casamento corria o risco de “ficar encalhada”, candidata a “ficar para titia”. Aos 25 anos, considerada uma solteirona, já era motivo de constrangimento. O problema não era apenas a solidão, mas teriam que se preocupar também com o seu sustento já que sem marido se tornariam um peso à família e ainda sofriam com o estigma de não terem cumprido o destino feminino.
A literatura e o cinema mostram muita rigidez e controle nos internatos, mas de acordo com a ex-aluna Rita de Cássia Mussi Gervásio, no Colégio N. S. das Dores “Havia muita cobrança com a disciplina e a conduta com o outro, mas não era nada assustador. Havia muito espaço para brincadeira.” Ainda segundo Rita Gervásio existia uma caixa de som dentro das salas de aula permitindo que a freira coordenadora do turno ouvisse da direção as aulas. Na entrada do colégio não toleravam o atraso de um a dois minutos das externas, que tinham que voltar para casa perdendo a aula.
Tinham o uniforme diário, o de gala e usavam boina e japona no inverno. Sua entrada no colégio não era admitida sem o uniforme completo, até mesmo sem a boina. A propósito, uma aluna uniformizada era uma extensão do colégio. Por isto, na saída da escola, não poderiam conversar com rapazes estando uniformizadas e se as freiras vissem, no dia seguinte eram questionadas e submetidas a algum castigo. Havia os alcoviteiros que denunciavam as mocinhas e no dia seguinte lá vinha o sermão de que um “amigo colégio” viu alunas com o uniforme conversando com rapazes na rua. Os castigos eram normalmente ficar depois da hora para as externas e para as internas não fazerem os passeios ou receber a visita dos parentes.
De acordo com a ex-aluna Ana Maria Nogueira Santiago havia a separação entre as alunas internas e externas, tanto na sala de aula como no recreio. No caso do recreio possivelmente porque elas se dirigiam ao refeitório para a merenda, pois o sistema era de pensão. Percebe-se que havia maior vigilância sobre as internas até porque os pais entregavam às freiras suas filhas e a responsabilidade era muito maior. Ana Santiago relata que não podiam usar batom ou qualquer maquiagem. As externas que chegassem no colégio com alguma maquiagem tinham que lavar o rosto. A presença de rapazes era proibida no colégio. A festa junina por exemplo era somente entre as alunas e os rapazes não poderiam entrar. Eles ficavam de um ponto alto do morro observando a festa.
As alunas do internato que tivessem bom comportamento poderiam no fim de semana passear em torno do colégio, na praça, mas sempre uniformizadas, perfiladas em dupla e acompanhadas de uma freira. Eram divididas em pequenas, médias e grandes e cada uma destas divisões tinha uma freira responsável. Dulce Maria Soares Decache foi interna por seis meses e depois se tornou externa. Menina de fazenda em Santa Maria Madalena não se adaptou ao regime de internato. O pai comprou um apartamento em Friburgo e ela se tornou externa juntamente com as duas irmãs. As meninas que vinham de fazendas e habituadas a um estilo de vida mais livre tiveram no início problema de adaptação.
Como as internas não poderiam receber e nem mandar correspondência usavam as alunas externas para enviar e receber a carta de seus enamorados. As alunas internas somente poderiam tomar banho de camisolão. No entanto, na prática, na hora de tomar o banho tiravam o camisolão e se banhavam nuas. Antes de sair do chuveiro vestiam o camisolão, molhando-o, para simular que tomaram banho com ele. Havia as serenatas feitas pelos rapazes e isto poderia significar que alguma aluna interna estaria estabelecendo contato extramuros. Por isto, possivelmente para evitar a camaradagem das alunas externas, que levavam as correspondências das internas, as freiras as distanciavam na sala de aula e no recreio. Quais eram as transgressões na rotina do colégio? Subir a escada batendo o pé, fugir para a gruta ou dobrar a saia encurtando-a na saída do colégio. A gruta foi construída por Francisco Vidal Gomes, o arquiteto construtor do Colégio Anchieta.
Estudavam além das disciplinas básicas os idiomas francês, inglês, latim e grego. Na aula de trabalhos manuais aprendiam ponto de sombra, ponto russo, ponto de cura, ponto turco, ponto de cruz, ponto cheio, nó francês, debrum, costura francesa, rococó, cadarço, caseado, Richelieu, aplicação e crivo, preguinhas, bainha cheia e bainha inglesa. A descrição do ponto Richelieu era o seguinte: dobra-se o desenho com alinhavo e a seguir inicia-se o bordado com caseado. Depois de pronto corta-se o tecido deixando apenas o bordado. É muito usado em barras de vestido, colchas, toalhas e lençóis.
Leyla Lopes foi estudar no colégio Nossa Senhora das Dores em 1949. Por sugestão de sua mãe Zuleika ia anotando em um diário todos os acontecimentos principais do colégio. Vejamos um trecho que deixou em seu diário.
“O 3° ano fez ainda em 1951 um piquenique na Fazenda Ataíde. Combinamos de nos encontrar defronte ao cinema Leal onde tomamos o ônibus especial, às 7 h. A alegria foi imensa, enquanto viajávamos cantávamos e idealizávamos passeios para quando chegássemos à fazenda.(…) Percorremos a fazenda, brincamos e nos divertimos com muitos jogos e brincadeiras. Às 11 h eu, Dulce, Madalena e Cely nos afastamos das colegas a procura de framboesas, mas não as encontramos. Resolvemos então às 12 h comer a nossa merenda. Depois subimos numa colina onde tomamos refrescos. Dali avista-se a estrada que ia para Amparo e a paisagem não podia ser mais linda e encantadora. Quando resolvemos descer dali encontramos vários bois que iam pastar. Madalena arranjou uma vara e espantando os animais permitiu a nossa passagem…”
Leyla Lopes começou a estudar com uma professora particular, o que era muito comum à época, tornando-se célebres educadoras Noêmia Carvalho, Helena Coutinho e Ítala Massa. Até a primeira metade do século 20, as professoras reservavam um espaço em sua residência para dar aulas. A turma era multisseriada, ou seja, alunos de diferentes níveis de aprendizagem, desde as primeiras letras até a quarta série. No colégio N. S. das Dores era comum as alunas terem um caderno que denominavam de relicário. Nas férias do meio e final de ano passavam de mão em mão este relicário para que as colegas deixassem uma mensagem. Algumas ofereciam a sua foto de rosto que era colada junto à mensagem. As mensagens poderiam ser de advertência, mas em sua maioria eram de despedida, possivelmente porque poderia haver mudança de colégio ou da própria cidade ou estarem se formando. Selecionei duas delas para se ter uma ideia de seu teor:
“Leyla, os homens nascem sorrindo, vivem enganando e morrem iludindo. As mulheres nascem chorando, vivem amando e morrem perdoando. Querida Leyla! Estas poucas palavras têm um sentido verdadeiro e profundo. Espero que sempre ao ler estas grandes verdades, escritas em poucas linhas, te lembres da amiga e colega de sempre. Gisela Dresche, 4° ano, Nova Friburgo, 23 de maio 1952.”
“Querida Leyla. “…Quando releres estas páginas, no futuro, recordarás do feliz tempo de colegiais que gozamos juntas. Ao chegares a esta página, peço-te que não a passes depressa. Quero que recordes desta tua colega que jamais te esquecerá. Um beijo de Mariana Villa. Nova Friburgo, 30 de maio de 1952.”
Das entrevistas que realizei todas as ex-alunas se queixaram do rigor na disciplina no cotidiano do colégio. Mesmo assim, guardam muitas saudades e boas recordações tanto do colégio como das freiras, a exemplo da Irmã Macuco, sempre citada de forma muito carinhosa. No Brasil a Congregação das Irmãs de Santa Doroteia de Francinetti também se estabeleceu no Rio de Grande do Sul, São Paulo, Brasília, Minas Gerais e Amazonas. Em Nova Friburgo, a partir da geração dos anos de 1950, as ex-alunas se reúnem periodicamente e os encontros são sempre muito animados com as lembranças dos saudosos anos dourados.
Fontes: Entrevistas com a Irmã Celma Calvão da Silva e ex-alunas. Sobre os Anos Dourados “História das Mulheres no Brasil”, org. Mary Del Priore; “História do Amor no Brasil”, Mary Del Priore; “História da Vida Privada no Brasil”, org. Nicolau Sevcenko.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora universitária
- Email: [email protected]
- Blog: jbhistoriadora.wixsite.com/janainabotelho
- Instagram: @janainabotelhohistoriadora
- Youtube: Janaína Botelho