Fandangos, cheganças, congadas e batuques: o Natal no passado
O dia de Natal foi escolhido em 25 de dezembro pelo papa Júlio I, no século quatro d.C. Já a tradição de armar o presépio foi criação de São Francisco de Assis, em 1223, no século 13. Os autos e cheganças na noite de Natal remontam a Alta Idade Média, época em que as produções em verso destinadas a celebrar o nascimento de Jesus confundiam-se com as composições sagradas; em que os trovadores e menestréis, seguindo as procissões solenes, exibiam-se nas lapinhas em visita ao Messias no presépio de Belém. Vestidos de pastores e reis magos e dedilhando as cordas de seus instrumentos dançavam e cantavam as suas danças e canções, representando os Mistérios diante do berço do menino Jesus. Em seus louvores o coro era uníssono. Tocadores de cítara partiam nos arpejos cordas vibrantes e os poetas entregavam-se ao fervor piedoso de suas inocentes composições. A dramatização com canto e dança recebia a contribuição dos cantos populares e da produção literária anônima em louvação ao Natal.
Nas praças e ruas a multidão passeava fazendo burburinho, tropéis nas calçadas, pandeiros arrufam e o canto do galo imitado em meio a algazarras. A Igreja e o povo comemoravam o Natal com grande alegria por meio de autos, cânticos votivos, bailes, música, reuniões entre famílias e amigos, comidas típicas e bebidas. Os autos bailados, conhecidos por fandangos ou marujadas representavam dramas marítimos. Já as cheganças “dos mouros” um drama épico da luta entre lusos-cristãos e muçulmanos. Conforme Câmara Cascudo, de meados de dezembro até o Dia de Reis, em 6 de janeiro, ocorriam uma série de festas notadamente pelo interior do país como o bumba-meu-boi, boi-calemba, chegança, fandango, pastoris, congadas e reisados. Antes da Missa do Galo, à meia-noite, ocorriam divertimentos em espaços públicos ou nas casas de particulares.
Quase meia-noite, os sinos repicam a miúdo, as igrejas abrem-se aos fiéis para a Missa do Galo e as famílias, precedidas do chefe, encaminhavam-se vagarosas para os templos. Nas residências o barulho dos pratos denunciava os preparativos da lauta ceia após a missa. Até o final do século 18 havia representações dentro das igrejas, mas depois os fandangos passaram a ser exibidos do lado de fora. Ainda segundo Câmara Cascudo a denominação portuguesa de “dia ou noite de festa”, como sinônimo de Natal, persistiu por muito tempo no Brasil. Dizia-se Natal tão somente nas cidades e entre as elites. Para o povo é noite de festa.
Nas cidades e nos arrabaldes o movimento animado das músicas executadas em várias casas. Na noite de Natal os bailes pastoris ocorriam tanto nas habitações dos ricos e das elites de um modo geral, como na dos pobres. Os tocadores de violão preludiam chulas e toada; os cantadores, que acompanham os concertistas ambulantes, cantavam quadras apropriadas e versos oportunos. O arrufar de pandeiros e adufes, o estalar ardente de castanholas e o planger de violões, guitarras e flautas adentravam no feérico presépio onde o povo dava passagem aos figurantes dos bailes pastoris. O baile pastoril era um auto cantado e dançado sobre temas sacros ou pequenos entreatos, diante do presépio. Chamam pastoril em memória dos pastores que vieram saudar o Deus-Menino e o louvaram, cantando. Os escravos dos “bons senhores” eram autorizados nas fazendas a fazerem algazarras, batuques com seus tabaques atroadores e as matinadas dos canzás.
No início do século 19, a festa da Natividade já não apresentava elementos religiosos tornando-se os cantos e danças profanos e o pastoril cantado diante do presépio descaracterizado. Em 1801, o Bispo de Olinda, Azevedo Coutinho, protestava contra as pastorinhas pela mundanidade substituindo os autos doces e inocentes por versos laicos. O artista francês Jean Baptiste Debret, convidado pelo Rei D. João VI para vir ao Brasil integrar a Missão Artística, retratou inúmeras cenas do cotidiano do Rio de Janeiro. Os costumes natalinos mereceram a sua atenção através de duas gravuras(desenhos de Thierry Frères), seguidas por comentários, produzidas na primeira metade do século 19. De acordo com Debret, as festas de Natal e Páscoa eram épocas de divertimento muito importantes no Brasil, ocasionando a interrupção do trabalho por mais de uma semana das classes média e alta das administrações, do comércio, dos diretores de repartições e dos ricos negociantes, todos proprietários rurais que aproveitavam o descanso para visitar suas usinas de açúcar ou plantações de café, localizadas a sete ou oito léguas da Corte.
Nas imensas propriedades rurais os ricos, por vaidade, reuniam grande número de pessoas. Convidavam também poetas para alegrar o ambiente, improvisando quadrinhas, e músicos encarregados de deleitar as senhoras com as modinhas. Visitava-se por cortesia um amigo numa propriedade mais afastada. Todos os dias os homens caçavam, pescavam ou saíam em passeio a cavalo. Já as mulheres ocupavam-se de sua toilette para o almoço das 10 horas. Neste repasto bebiam como entrada vinhos do Porto, Madeira ou Tenerife. Saboreavam diferentes espécies de aves, caça, peixes e répteis da região, acompanhado dos vinhos mais finos da Europa. O champanhe estimulava o poeta, animava o músico e os prazeres da mesa confundiam-se com os do espírito, através do perfume do café e dos licores. A reunião prosseguia em torno das mesas de jogo e à meia-noite servia-se o chá, depois do qual cada um se retira para o seu aposento onde não é raro se deparar com móveis de fins do século de Luiz XIV.
Os artífices, reunidos com parentes ou amigos, igualmente proprietários de sítios vizinhos da cidade, aproveitavam estas festas para fazerem viagens curtas. Bastava-lhes mandar levar as esteiras e a roupa pelos seus escravos. Na casa do sítio, na hora de dormir, as esteiras desenroladas no chão formavam leitos, distribuídos por três ou quatro salas do rés-do-chão(primeiro andar). Ao romper do dia erguia-se o acampamento e os homens se dividiam entre passear ou banhar-se no rio. O exercício da manhã abria o apetite e voltava-se a casa para almoçar. Após a refeição procuravam divertimentos mais tranquilos em razão do sol forte, até 1h da tarde, quando retornavam a casa para jantar. Cabe aqui uma observação sobre os horários das refeições nesta época. As pessoas remediadas e ricas tomavam apenas café pela manhã, almoçavam às 10h e jantavam entre às 14h e 15h. Voltando a descrição de Debret das 4h às 19h dormia-se. Após a Ave-Maria dançava-se durante toda a noite ao som do violão. Segundo Debret eram deliciosos “momentos de fresca” em que os velhos narravam suas aventuras do passado e os moços alguns episódios felizes, “cuja recordação encantará um dia a sua velhice.”
Na gravura intitulada “Mulata a caminho do sítio para as festas de Natal”, Debret retrata um grupo de mulheres se dirigindo a um sítio. Debret destaca com ironia que por ser a senhora mulata, evidentemente a criadas de quarto deveria ser negra. Nas residências mais abastadas era costume o emprego de mulatas como criada de quarto. No entanto, quando a senhora era mulata escolhia uma mulher negra como camareira.
“A senhora mulata representada aqui é da classe dos artífices abastados. Sua filhinha abre a marcha conduzindo pela mão um menino negro, a seu serviço particular; vem em seguida a pesada mulata, em lindo traje de viagem, que se dirige a pé para o sítio situado num dos arrabaldes da cidade. A senhora mulata possui uma criada de quarto, uma mulher negra, que a acompanha carregando o pássaro predileto. Logo depois a primeira mulher negra de serviço, com o gongã, cesto em que se coloca a roupa branca. A terceira mulher negra carrega o leito da senhora, um elegante travesseiro enrolado numa esteira de Angola (..) A quarta é uma encarregada de trabalhos considerados menos nobres, uma lavadeira quase sempre grávida, que carrega os pertences das outras companheiras; e a moça negra mais nova acompanha humildemente o cortejo carregando a provisão de café torrado e a coberta de algodão com que se envolve à noite para dormir.”
E como eram os presentes de Natal? As pessoas trocavam presentes entre si por ocasião das festas de Natal, de 1° do Ano e de Reis. No dia de Natal e de Reis tradicionalmente os presentes eram comestíveis como caça, aves, leitões, doces, compotas, licores, vinhos etc. Costumava-se renovar nesta ocasião a roupa dos escravos. Conforme Debret entre as pessoas abastadas os presentes “de um gosto mais apurado” eram enviados em bandejas de prata com toalhas de musselina muito finas, pregueadas com arte e presas com laços de fitas. Na gravura intitulada “Presentes de Natal”, no primeiro plano três escravos levam um peru, dois porquinhos pirapitinga e inúmeros frangos, todos vivos, para a residência de uma família abastada. No segundo plano da gravura uma escrava leva uma imensa peça de carne de um animal abatido e sobre uma belíssima almofada um mimo, que parecem ser rebuçados(balas). Conforme dito antes, no Ano Novo, no dia primeiro, de manhã à tarde, faziam-se visitas e desfilavam pelas ruas numerosos portadores de presentes sendo de preferência contemplados os vigários, os médicos e os fiscais.
Na véspera do dia de Reis grupos de músicos organizavam serenatas debaixo dos balcões de seus amigos, os quais, em troca, os convidavam a subir para tomar algum refresco e continuar a música no salão até a madrugada. Para os mulatos e negros livres esta ocasião constituía em um carnaval improvisado. Fantasiados em pequenos grupos e escoltados por músicos percorriam as ruas da cidade prolongando suas excursões pelos arrabaldes, onde acabavam entrando numa venda e aí permanecendo até o nascer da Aurora. Outros preferiam organizar pequenos salões de bailes onde se divertiam ruidosamente dançando lundu, “pantomima indecente que provoca os alegres aplausos dos espectadores”.
Localizei uma crônica interessante no jornal O Friburguense, “De Antigamente e de Agora”, de 23 de dezembro de 1928, de Henrique Zamith, que viveu sua infância e juventude no final do século 19. Nela podemos conhecer o Natal de uma típica família burguesa friburguense daquela época. Um dado curioso era que na noite de Natal, músicos percorriam as ruas do centro da cidade tocando instrumentos e era hábito da população flanar pelas ruas e praças. Nas residências grande movimentação, o sangue coagulado do porco para fazer o chouriço e as crianças tagarelando excitadas.
“A chegada do Natal, momento íntimo e familiar era dia de grande sarrabulhada. As casas ficavam todas em polvorosa: da sala de visitas à cozinha, o quintal, a dispensa e a copa eram uma azáfama de endoidecer. As crias da casa, velhas negras remanescentes da extinta escravidão resmungavam, arrumavam, iam e vinham, taramelavam, lavavam, vasculhavam, areavam e poliam. Na despensa era um requebrar de ovos, bater de bolos, lambuzar forminhas, fazer doces, pudins, biscoitos e broas. Na cozinha, o preparo de perus, leitoas, frangos recheados e tortas mal dava tempo de descanso às velhas cozinheiras. As próprias costureiras não tinham mão a medir: damas, senhoritas e meninas todas tinham seus vestidos encomendados. Enfim, chegava à véspera do Natal! Era um dia de prazer, de vivas emoções, de júbilo e de alegria! Os jantares desse dia eram notáveis! Vinham as cantigas e depois o sarau respeitoso até às 10h com valsas lentas. Na ceia castanhas, rabanadas, leitoas, frangos, perus, doces, amêndoas e vinho verde. A tradicional Missa do Galo onde de tudo se cogitava menos ouvir a missa e depois os boas-noites, boas-festas e muitas felicidades. A seguir, todos se recolhiam contentes e felizes e a meninada a sonhar com o papai Noel a lhe encher de brinquedos as botinas e os sapatos…”
Finalizo este artigo com o antológico soneto de Natal, de Machado de Assis.
“Um homem, era aquela noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno. Ao relembrar os dias de pequeno, e a viva dança, e a lépida cantiga. Quis transportar ao verso doce e ameno, as sensações da sua idade antiga, naquela mesma velha noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto…a folha branca. Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, a pena não acode ao gesto seu. E em vão lutando contra o metro adverso, só lhe saiu este pequeno verso: Mudaria o Natal ou mudei eu?” Desejo a todos os leitores do SERRA NEWS um Santo Natal!
FONTES: “Festas e tradições populares do Brasil”, Mello Moraes Filho; “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, Jean Baptiste Debret; “Civilização e Cultura”, Luís da Câmara Cascudo; Jornal O Friburguense.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora da UCAM
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