Os Puris na Região Serrana Fluminense
Indígenas, qual é o seu lugar na história do Brasil? Durante séculos foram invisíveis como sujeitos históricos. No entanto, nas últimas décadas, os historiadores vêm demonstrando o seu protagonismo tanto na questão dos conflitos de terra como também na sua resistência em relação à política assimilacionista dos governos colonial, imperial e boa parte do período republicano. Nos dias de hoje são mais de 305 etnias e paulatinamente vão passando da invisibilidade construída para o protagonismo conquistado. O objetivo deste artigo é mostrar tão somente a presença dos Puris, na região serrana fluminense onde havia igualmente os Koropó e Goytaká. O povo Puri é originário de quatro Estados do Sudeste como o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo. Ocupou tradicionalmente a região banhada pela bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul.
A carta geográfica elaborada em 1767, descrevia a região serrana como sertão ocupado por índios bravos. Naquela época a palavra sertão significava local despovoado e índios bravos, o fato de não terem sido aldeados e catequizados. Neste artigo apresento alguns aspectos culturais dos Puris através dos relatos de viajantes europeus que tiveram no século 19 contato com eles. O mineralogista inglês John Mawe, o botânico francês Auguste de Saint-Hilarie, o pintor francês Jean Baptiste Debret, o paleontólogo alemão Hermann Burmeister e o diplomata suíço Johann Von Tschudi estabeleceram contato com os Puris. Pela região também passaram, em 1815, o príncipe Maximilien Alexander Philipp Wied-Neuwied e o naturalista Freyreiss. Ainda que seus relatos tragam juízo de valor extremamente preconceituoso e eurocêntrico são interessantes os registros em relação a vida cotidiana e material dos Puris naqueles sertões.
No último quartel do século 18, no Noroeste da capitania fluminense, se instalaram aldeamentos indígenas fundados por monges franciscanos italianos, a exemplo do aldeamento de São José de Leonissa da Aldeia de Pedra, atual município de Itaocara e onde é hoje o município de São Fidélis. Os viajantes encontraram no século 19 estas duas aldeias já bem miscigenadas. Diferentemente dos jesuítas, que excluíam brancos junto aos indígenas, os franciscanos promoveram a miscigenação. A política assimilacionista lançada desde meados do século 18 pelo Marquês de Pombal era retomada e predominava a proposta de incorporar os indígenas ao Império, como cidadãos civilizados para servir ao governo, com o abandono de suas culturas e apropriação de sua força de trabalho. Os aldeamentos, além de doutriná-los na religião cristã objetivava civilizá-los, o que significava fazer com que abandonassem a prática do nomadismo e adotassem o modo de vida dos luso-brasileiros, a exemplo do trabalho fixo na terra, garantindo com isso a mão de obra barata ou mesmo servil para as lavouras dos novos colonos na região.
CANTO PURI
Kanaremundê Petára
Petara, petara, poteh, miripon
Ximan xuteh, okora dieh
Lua, lua, luz da noite
Caminho bom, você no céu
Os sertões do Macacu povoado pelos Puris pertenciam ao município de Santo Antônio de Sá. Com a queda acentuada da extração de ouro em Minas Gerais no último quartel do século 18, ocorreu o deslocamento de garimpeiros da Zona da Mata mineira para a região fluminense, em busca do ouro de aluvião nos afluentes dos Rios Grande e Negro. Um dos aventureiros foi Manoel Henriques, conhecido pela alcunha de Mão de Luva. É muito provável que tiveram auxílio de indígenas, pois a penetração na floresta apenas poderia ser feita pelo homem branco tendo como guia estes povos, descritos como “os pretos da terra”.
Houve repressão por parte do governo colonial em relação a ocupação clandestina daqueles sertões, com a prisão de Mão de Luva e todo o seu bando. No ano de 1785, o Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza autoriza o povoamento oficial daqueles sertões doando sesmarias a quem tivesse condições de se afazendar dando uma atividade produtiva à terra. Iniciava-se a ocupação oficial dos sertões do Macacu. A princípio começaram explorando ouro de aluvião, mas esgotado este minério, os beneficiários da doação de terras passaram a derrubar a mata plantando na clareira roças de milho, feijão, fumo, tubérculos, frutas, estabelecendo engenhocas e criação de porcos. Em 09 de março 1814, o príncipe regente D. João VI cria a município de São Pedro de Cantagalo desmembrando-o de Santo Antônio de Sá. Este povoamento contribuiu para a perda cada vez maior de terras ocupadas pelos Puris, principalmente a partir do cultivo do café, que iria prevalecer como atividade econômica na região.
CANTO PURI
Kanaremundê Tenu-ahi
Tenu-ahi, opê potê, tenu-ahi
Tenu-ahi, axe maxe, tenu-ahi
Tenu-ahi, petara sayma, tenu-ahi
Tenu-ahi, ñaman ñamaytu, tenu-ahi
Tenu-ahi, txuri sayma, tenu-ahi
Tenu-ahi, sate makapon, tenu-ahi
Grato, luz do sol, grato
Grato, alimento da terra, grato
Grato, lua brilhante, grato
Grato, frescor da água, grato
Grato, estrela brilhante, grato
Grato, amor dos irmãos, grato
No ano de 1820, uma parte da região de Cantagalo é desmembrada para dar origem ao município de Nova Friburgo, criada especialmente para estabelecer uma colônia com famílias suíças. O juiz Cansanção de Sinimbu, em meados do século 19, nos informa que se mandou reservar para o patrimônio da vila de Nova Friburgo, 1/4 de légua da Fazenda do Córrego d’Antas. Sinimbu relata que indígenas habitavam o território desta propriedade. O pesquisador Carlos Jayme Jaccoud confirma que em Córrego d’Antas foi encontrado um machado de pedra polida na propriedade de sua família. Neste mesmo distrito de Nova Friburgo, em Salinas, localizei em um estabelecimento comercial um precioso acervo de peças polidas de artefatos indígenas encontrados na região. O Aviso de 3 de dezembro de 1819 determinou remover indígenas, provavelmente Puris, para um aldeamento, para não incomodarem os colonos suíços. Na Fundação D. João VI há uma correspondência de 23 de novembro de 1824, com a referência de que os indígenas foram empregados para abrir picadas nos terrenos doados aos colonos suíços.
No município de Sumidouro foram localizadas igualmente pedras polidas atribuídas aos indígenas, quando realizadas escavações arqueológicas pelo Instituto de Arqueologia Brasileira. O pesquisador Leonardo Iório nos revela, que no diário do proprietário da Fazenda do Paredão há o registro de uma “correria de índios”. Na Fazenda Santa Inês, em Paraíso do Tobias, segundo distrito do município de Miracema foi localizado em 2011 um sítio arqueológico na superfície rochosa de um córrego. Foram identificadas marcas de polimento e de amolação no local. Provavelmente estas marcas estão relacionadas a fabricação de machados líticos dos Puris.
Os Puri eram considerados pelo governo como selvagens. Os termos tapuia, botocudo e índio bravo se cruzam nos registros e no imaginário da época, em oposição aos índios mansos, de catequização viabilizada pelo uso de línguas tupi, conhecidas pelos colonizadores. Conforme os historiadores Puris Tutushamum e Txâma Xambé, do movimento Txemim Puri, os vários registros sobre a dificuldade de se aldear ou catequizar os Puris não condizem com o relato dos viajantes sobre o engajamento dos indígenas em forças militares.
As choupanas dos Puris eram feitas com folhas de palmeira e assemelhavam-se a grandes gaiolas de pássaros. Algumas eram construídas de ramos de árvores inclinados de forma a suportar o colmo ou teto de folhas de palmeira. Os leitos eram de capim seco. Saint-Hilaire viu choças cobertas com folhas de palmeira. Debret observou que se estabeleciam sempre à beira dos rios ou riachos. Segundo ele, as choças dos Puris denominavam-se em sua língua cuari. De estrutura muito simples sustenta uma camada interior de folhas de patioba, palmeira de folhas lisas ou de helicônia recoberta por várias camadas de folhas de palmeiras-côco.
Debret representa em uma ilustração uma cena de homens brancos europeus aparecendo em uma aldeia Puri. Os dois europeus são introduzidos por um caçador. Presenteiam o grupo com uma garrafa de aguardente para facilitar a recepção. Geralmente levam-lhes alguns presentes e em troca recebem arcos e flechas. Familiarizados com a língua portuguesa se fazem compreender ainda que com uma pronúncia imperfeita. Diante dos estranhos duas mulheres reunidas em torno de uma provisão de frutas demonstram pudor. Uma esconde os seios cobrindo-os com seus longos cabelos negros, enquanto a outra se esforça para aproximar o pé na parte pudenda, que deseja subtrair ao olhar dos estranhos. O chefe da aldeia está sentado no chão e cercado de jovens indígenas atentos às suas narrativas. Um menino de cócoras bebe água com a ajuda de um caniço. O príncipe Maximilien Alexander Philipp Wied-Neuwied, na margem setentrional do Rio Paraíba do Sul se deparou com Puris em uma fazenda que se dedicava quase exclusivamente ao extrativismo. Os Puris eram empregados para abater as árvores e transportar os toros pelos rios. Mas havia os que não se submetiam a vida sedentária retirando-se para a mata e alimentando-se exclusivamente da coleta, da caça e da pesca.
Existe uma operação que compete exclusivamente às mulheres. Trata-se da mastigação de substâncias vegetais necessárias à composição das bebidas espirituosas. Entre os Puris esta bebida chama katipuera e em outras etnias cauim, licor com o qual se embebedam nos seus divertimentos. As mulheres reunidas dedicam várias horas consecutivas à mastigação dos grãos de milho. Depois de triturados são cuspidos dentro de um vasilhame. Esta pasta fermenta na água quente durante 12 a 16 horas. Após essa primeira fase de preparação, o conteúdo é despejado em um grande recipiente para novamente fermentar, sendo misturada uma maior quantidade de água quente. Durante estas duas operações agita-se o líquido com uma vareta. Esse licor espirituoso manipulado sem cessar sobre o fogo deve ser consumido ainda quente. A batata-doce e a mandioca produziam o mesmo resultado. Porém, as mulheres preferiam os grãos de milho por serem mais agradáveis para mastigação. Frutos como a ananás, o caju, entre outros, produzem igualmente pela maceração licores extremamente capitosos que os indígenas bebiam com paixão.
Hábeis caçadores eram muito procurados pelos viajantes. Eram utilizados em suas excursões através da floresta para abater os animais selvagens, cujos hábitos conheciam perfeitamente, provendo a alimentação da caravana. Conduzido unicamente pelo instinto natural se orientavam no meio da floresta pelo olfato. A vista exercitada e sempre vigilante percebe o rastro de um animal unicamente pelos sinais de alteração produzidos pela sua passagem entre as folhagens. O pagamento consistia em algumas garrafas de aguardente. Alguns se comprometiam a fazer a escolta durante um tempo ilimitado; outros, encontrados por acaso, acompanham o viajante durante tão-somente certa distância.
Burmeinster observa que os Puris plantavam mandioca, laranjeiras e bananeiras ao lado de suas casas, o suficiente para o seu consumo, não havendo excedentes. Empregam-se como diaristas nas fazendas mais próximas abatendo e transportando madeira. Usavam o machado com tal destreza que em poucos instantes conseguiam derrubar árvores grossas. Levavam os toros até o rio numa espécie de trenó. Uma vez lançadas no rio as toras são amarradas de modo a formarem uma espécie de balsa ou jangada. Nesse transporte os índios são extraordinários e ficam semanas sobre os troncos que flutuam até chegar ao seu destino, escreve Burmeinster.
De acordo com os relatos dos viajantes o território dos indígenas era cada vez mais reduzido em razão do aumento de colonos. O suíço Tschudi assinala que roças de milho, feijão e cana, bem como pastagens dos colonos tomavam cada vez mais o lugar da mata, avançando sobre a floresta. Em razão disso, os indígenas forçosamente iam sendo obrigados a se retirar. Observa que se impõe ao índio o dilema inexorável, a assimilação ou a rendição. Os dias dos Puris estavam contados, observa. Saint-Hilaire nos traz um importante depoimento que resume bem a tensão entre os indígenas e os colonos. Terminada uma dança de seu povo, o chefe do grupo senta-se ao pé(próximo) do proprietário da fazenda dirigindo-lhe com um tom bastante tímido, mas ao mesmo tempo solene, um discurso em um português simples. “Esta terra nos pertence, e são os brancos que a povoam. Desde a morte do nosso grande capitão somos escorraçados de toda a parte e não temos mais nem lugar suficiente para poder repousar a cabeça. Dizei ao Rei que os brancos nos tratam como cães e rogai-lhe que nos dê terra para podermos construir uma aldeia.”
Em várias regiões do Brasil, sobretudo a partir da segunda metade do século 19, a questão indígena tornava-se basicamente uma questão de terras. As câmaras municipais intensificavam investidas para apoderar-se das terras dos aldeamentos. Para justificar a extinção destes aldeamentos construía-se a falsa narrativa da miscigenação e do consequente desaparecimento dos indígenas. Contrariamente a este argumento resistiam à usurpação de suas terras. Não foram poucos os líderes que se deslocaram à Corte para pessoalmente pedir ao Rei D. João VI a proteção de suas terras. Aprenderam a valorizar acordos e negociações com autoridades e com o próprio Rei, reivindicando mercês em troca de serviços prestados que lhes garantia alguns direitos, dentre os quais a terra coletiva.
Os Puris sofreram ao longo dos séculos 18 e 19 um processo de genocídio. Os que sobreviveram foram expropriados de suas terras, ocorrendo a diáspora para territórios mais seguros. De acordo com História oficial foram extintos ou miscigenados. No entanto, contrariamente à narrativa do governo, os Puris sobreviveram ao etnocídio preservando a cultura, memória e identidade do seu povo. Nos dias de hoje continuam nos Estados tradicionalmente ocupados, anteriormente mencionados. Os povos indígenas têm obtido cada vez mais o reconhecimento de seu verdadeiro lugar na história, na cultura e na sociedade, desafiando a política assimilacionista que pretendia extingui-los.
Existe o movimento indígena Txemim Puri, composto por Puris dos quatro Estados do vale do Paraíba, que realizam pesquisas sobre a história, língua e cultura de seu povo. Entre os objetivos específicos, o ensino da língua Puri, registro dos saberes de anciãs e anciãos e a preservação coletiva de suas práticas culturais. O movimento igualmente apoia educadores interessados em incluir conteúdos de história e cultura Puri em seu trabalho pedagógico. O Projeto Txemim Puri possui as publicações “Vocabulário Bilíngue Kwaytikindo-Português” e a obra “Povo Puri: História, Cultura e (R)Existência”, vol 1. É o primeiro livro sobre História, Língua e Cultura Puri, produzido por Puris, disponibilizado aos educadores e interessados.
- Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora da UCAM
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- Blog: jbhistoriadora.wixsite.com/janainabotelho
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