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A história do Sanatório Naval de Nova Friburgo

No ano de 1889, a Armada que doravante passaremos a chamar de Marinha para melhor compreensão, instalou em Nova Friburgo duas enfermarias para tratamento de praças acometidos de beribéri, doença muito comum em razão de seu ofício. Foram alugadas na Rua General Osório duas chácaras com casas de vivenda que se comunicavam por um caminho interno. Por que a Marinha escolheu Nova Friburgo para o tratamento dos marujos? Possivelmente dois foram os motivos, a salubridade do clima das montanhas e o uso da hidroterapia, notadamente das duchas, no Estabelecimento Hidroterápico instalado na cidade. Segundo registros os que foram paralíticos e com atrofias musculares depois das duchas deixaram as muletas e caminhavam apenas firmados em suas bengalas. Não havia consenso entre os médicos sobre o benefício das duchas para o tratamento do beribéri. Haviam médicos que afirmavam que a influência benéfica do clima de Nova Friburgo tinha um papel muito mais relevante no restabelecimento dos enfermos do que as duchas.

Hotel do complexo do Estabelecimento hidroterápico. Acervo pessoal
Hotel do complexo do Estabelecimento hidroterápico. Acervo pessoal

Porém, o coproprietário do Estabelecimento Hidroterápico, o médico Theodoro Gomes, decidiu pôr fim ao contrato com a Marinha. A possibilidade de contágio e a promiscuidade dos marujos com os seus ricos doentes cariocas que procuravam as duchas ameaçavam a perda de sua clientela. Na ocasião acreditava-se que o beribéri era uma doença contagiosa, mas não é, mas apenas uma deficiência vitamínica. A decisão do diretor não agradou ao Barão do Ladário, Ministro da Marinha, que iniciou negociações com a viúva de Carlos Éboli, coproprietária do estabelecimento hidroterápico, para a sua aquisição. No entanto, o barão não contava com a presença de um ilustre veranista e assíduo frequentador de Nova Friburgo, Rui Barbosa. Foi este jurista e ilustre político o responsável pela obstrução da negociação de compra alegando indisciplina dos marujos. “Ao nobre Ministro da Marinha vimos endereçar hoje uma petição em nome do povo de Nova Friburgo e dessa parte seleta dos habitantes do Rio de Janeiro, que atualmente procura nas amenidades daquele bom clima, refúgio precioso contra as inclemências do verão nesta capital (…)A presença da marujada desenvolta, sem freio possível de disciplina, nem repressão policial exequível, nas condições do lugar e nas relações inevitáveis desses hóspedes para com ele têm sido um elemento de insegurança, desordem e alvoroço entre os hábitos morigerados e pacíficos daquele povoado, promovendo cenas inquietadoras, alterando a tranquilidade patriarcal daqueles sítios e trazendo as famílias em contínuos receios, justificados por incidentes, que se multiplicam e engravescem com o decorrer do tempo…”

Hotel Leuenroth. Acervo F. D. João VI
Hotel Leuenroth. Acervo F. D. João VI

O barão inicia negociações com Carlos Engert, proprietário do Hotel Leuenroth, e tudo indica que também prestava aplicação de duchas, mas com instalações bem mais modestas. Entra em cena novamente a pena de Rui Barbosa em outra eloquentíssima e erudita defesa da salubridade de Nova Friburgo, que poderia ser afetada com a vinda de um “centro de peste” no coração da galante vila.  “Anda, com efeito, estes dias, outra vez, o Ministério da Marinha em diligências, para dotar Friburgo de um bem organizado centro de peste. Variou apenas a escolha do Instituto Eboli para o Hotel Leuenroth. (…)aquela singela casaria(…) é o refúgio comum de todos os veranistas nas horas menos frescas da estiagem por aquelas serras. Ora aí está o que se imagina transformar agora numa estação matalotes e num viveiro permanente de epidemia. Este projeto é a extinção de Friburgo”.

Marujos do Sanatório Naval. Acervo BN
Marujos do Sanatório Naval. Acervo BN

A Marinha adquire então o chalé de caça dentro de uma mata de 196 alqueires pertencente a Bernardo Clemente Pinto, o Conde de Nova Friburgo. Em 30 de junho de 1910, finalmente a Marinha inaugura o seu próprio hospital. Alguns anos depois já contava com a aparelhagem de hidroterapia para tratamento de seus marujos com as milagrosas duchas.  Em 1912, descobriu-se que o beribéri era uma deficiência de vitamina B1 e ficou bem mais fácil tratá-la. Consequentemente, a Marinha voltara-se para outra doença que ceifava muitas vidas em todo o mundo, a tuberculose. Em 18 de fevereiro de 1936 foi inaugurado o hospital de tuberculosos, conhecido como “HT”, que se convencionou chamar de sanatório. Uma prática muito comum em sanatórios na Europa eram irmãs de caridade serem cooptadas para auxiliarem estes estabelecimentos. Em 1941, as irmãs da Ordem de São Vicente de Paulo passam a se ocupar de tarefas na lavanderia, na cozinha e assistência espiritual aos enfermos do sanatório da Marinha. Edificou-se numa colina uma linda capela para ofícios de um capelão militar.

Capela nas instalações do Sanatório Naval. Acervo pessoal
Capela nas instalações do Sanatório Naval. Acervo pessoal

O médico Alexander Spengler trabalhando em Davos, na Suíça, percebeu que o ar seco e rarefeito das montanhas tinha um efeito benéfico nos pulmões. Acreditava-se que a rarefação do ar obrigava os pulmões a uma ginástica metódica e salutar e por isto o clima das montanhas era indicado para a convalescença de tuberculosos. A notícia se espalhou rapidamente entre a comunidade médica. Inúmeros sanatórios para tratamento da tuberculose pulmonar passam a ser construídos na Europa a partir de meados século 19. Alguns historiadores estimam que a tuberculose eliminou quase ¼ da população da Europa neste século. Mas o clima das montanhas auxiliava mesmo a cura desta doença? A princípio não, mas como os regimentos dos sanatórios eram baseados na disciplina, ditavam regras de uma dieta saudável, repouso ou caminhadas dependo do estágio da doença, tudo isto corroborava na crença dos benefícios da climatoterapia. Na estatística 50% morriam, 25% permaneciam doentes crônicos e 25% se curavam espontaneamente. Os 50% sobreviventes atribuíam ao clima das montanhas a sua convalescença.

O hotel não aceita tuberculosos. Acervo BN
O hotel não aceita tuberculosos. Acervo BN

Mesmo quando Robert Koch anuncia a descoberta em 1882 do bacilo da tuberculose, os tísicos continuavam a recorrer às localidades de clima frio e seco. Na Europa e América do Norte os sanatórios dos alpes e das cidades serranas seriam procurados pelos tuberculosos até que fosse descoberto pelo americano Selman Abraham Waksman, em 1944, a estreptomicina, o antibiótico que combate o bacilo. Entre 1911 e 1945 indústrias têxteis e metalúrgicas se instalam em Nova Friburgo, aumentando sobremaneira a população em razão da migração de indivíduos de municípios vizinhos em busca de empregos nas fábricas. Os melhores hotéis passam a não acolher os tuberculosos que buscavam o clima da serra abrindo espaço para a proliferação de pensões que ofereciam a hospedagem. Muitas famílias disponibilizavam um quarto de suas residências alugando aos tuberculosos para aumentar a renda.

O Cassino Cascata quase virou um hospital de tuberculoses. Acervo IBGE.
O Cassino Cascata quase virou um hospital de tuberculoses. Acervo IBGE.

O Cassino Cascata em Nova Friburgo quase foi adquirido pelos proprietários do hospital de tuberculosos de Corrêas, em Petrópolis. O empresário Augusto Luiz Spinelli, presidente da Câmara Municipal e da Associação Comercial, juntamente com outras pessoas, impediu esta compra evitando que o município tivesse o segundo sanatório. Foi nesta ocasião que Augusto Spinelli se voltou contra o sanatório da Marinha. Declara em artigo no jornal A Paz que o HT “trazia estragos à população, à sua economia, vida social, à sua fama de cidade salubre e a contaminação constante dos friburguenses, além de ser um foco de infecção pernicioso para os habitantes de Friburgo”. Ainda segundo ele, o sanatório da Marinha era um estabelecimento hospitalar “tetricamente encorujado” no meio da mata para contaminar a população. Fazia uso do decreto-lei n°1943, de 09 de junho de 1947, em que os prefeitos deveriam proceder ao zoneamento da cidade e dentro de 5 anos, a contar da data do decreto, todos os estabelecimentos para tuberculosos deveriam ser removidos dos perímetros urbanos e suburbanos.

Os Spinelli, Augusto na extremidade à direita. Acervo família Spinelli
Os Spinelli, Augusto na extremidade à direita. Acervo família Spinelli

Depois de enfrentar a pena de Rui Barbosa, a Marinha tinha agora um novo adversário, o sócio proprietário de diversas empresas em Nova Friburgo em variados ramos de negócio como construção civil, comércio, transporte, incluindo aviação, e agropecuária. Os Spinelli eram a família mais rica do município. O acrimonioso artigo de Augusto Spinelli teve pronta resposta na imprensa do comandante do Sanatório Naval de Nova Friburgo, Capitão de Mar e Guerra, o médico Antônio Ayres de Mendonça. Argumenta que desde tempos imemoriais Nova Friburgo abrigava muitos tuberculosos que para ali acorriam devido às características favoráveis de seu clima à cura da doença. A seguir esclarece que todo esgoto do HT era coletado em uma grande fossa biológica para depuração, antes de ser lançado ao rio. Quanto ao contato dos marujos com a população estavam submetidos ao regimen sanatorial e só eram licenciados uma vez por semana para ir a cidade os que apresentassem negativo o exame do escarro. Ainda segundo o comandante em nada representavam perigo frente a centenas de tuberculosos que livremente habitavam os hotéis, as pensões improvisadas e as casas particulares da cidade, focos ambulantes de disseminação da tuberculose. Conclui declarando que Nova Friburgo era perigoso foco de tuberculose, tifo e outras doenças contagiosas, contaminando as localidades vizinhas pois levava milhões de micróbios procedentes do lançamento direto do esgoto nos rios da cidade, sem o menor tratamento. Augusto Spinelli desculpou-se através da imprensa sobre suas colocações em relação ao HT.

O bondinho do Sanatório Naval. Acervo F.D. João VI
O bondinho do Sanatório Naval. Acervo F.D. João VI

Ainda na década de 1940 um grupo de médicos abriu um sanatório privado denominado de Santa Therezinha, no bairro Catarcione, hoje desativado. A partir de 1950 com popularização da estreptomicina e a tuberculose tratada com medicamentos, os sanatórios vão sendo gradualmente fechados. Na Suíça alguns deles direcionaram seus serviços para o tratamento de alergia e asma e outros se transformaram em hotéis como o famoso hotel Schatzalp em Davos, que inspirou Thomas Mann no livro Montanha Mágica. O livro trata da vida cotidiana de um sanatório de tuberculosos nos alpes suíços. O Sanatório Naval de Nova Friburgo foi igualmente transformado em hotel. O ambiente senatorial inspirou muitos poetas, compositores e escritores. O tísico Dostoievski transporta para sua obra Crime e Castigo o terror da doença, assim como Stendhal em O Vermelho e o Negro e Victor Hugo em Os miseráveis. O livro A Dama das Camélias de Alexandre Dumas aborda a questão da tuberculose e a personagem principal padece desta doença. Se inspirou em A Dama das Camélias o compositor Giuseppe Verdi que escreveu a ópera La Traviata. O terceiro ato é a tragédia da morte de uma mulher abandonada por ter contraído tuberculose. Giacomo Puccini também se inspirou em A Dama das Camélias e compôs a ópera La Bohème que trata da temática da tuberculose. Os exemplos são inúmeros. Finalmente, no Brasil, o filme Floradas na Serra foi um sucesso na época. A personagem principal é uma tuberculosa que muda-se para Campos do Jordão em busca de cura na serra.


Janaína Botelho – Serra News

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