O Beco da Sofia e as moças-damas de Nova Friburgo
Uma menina nos seus 12 anos de idade, olhar atento e perscrutador observava curiosa as atividades de sua avó. Não era para menos. O local em que ela trabalhava chamava a atenção. Estava sempre repleto de pessoas, havia muito movimento, gente de todo tipo, de marinheiros a estudantes, de homens distintos a outsiders e a vitrola sempre ligada enchendo o ambiente de música e alegria. Quando se aproximava durante o dia as moças da casa sempre a evitavam. Ordens de Dona Sofia, ninguém poderia se comunicar com a sua neta. Mas a curiosa menina transgredia as fronteiras e penetrava neste espaço proibido, nos legando suas memórias sobre a atmosfera do que ficou conhecido em Nova Friburgo como o Beco da Sofia ou o Beco das Oficinas, porque ficava próximo a oficina da Estrada de Ferro Leopoldina. Este artigo se baseia na entrevista que fiz com Wilma Villaça sobre como funcionava a casa de prostituição de sua avó, Sofia de Carvalho Villaça ou Dona Sofia, como era conhecida.
Nascida no distrito de Riograndina em Nova Friburgo, em 17 de setembro de 1899, Dona Sofia era uma mulher negra muito bonita, elegante, que tinha paixão pelos bons perfumes e pelo jogo dos bichos. Era casada com Galdino Neves Villaça, originário de Minas Gerais, com quem teve vários filhos. Eram sitiantes em Riograndina vivendo da lavoura até que uma dificuldade financeira os levou a vender o sítio e se mudarem para o centro de Nova Friburgo recomeçando a vida. Sofia passou a fazer salgados e doces vendendo “para fora” e Galdino biscates trabalhando como jardineiro. Veio uma crise no casamento e o casal acabou se separando. Sofia era conhecida como uma mulher de personalidade forte e até mesmo autoritária, mas extremamente humana e sociável. Foi valendo-se de uma rede de relações que no início da década de 1940 abriu em Nova Friburgo uma casa de prostituição com moças-damas, como eram conhecidas as profissionais do sexo. A casa localizava-se na subida do cemitério na Rua Gonçalves Dias, bem próxima ao Cadima Shopping. Sofia não foi para os arrabaldes da cidade como fazem geralmente estes estabelecimentos. O lupanar ficava em frente à residência que vivia com os seus filhos, todos criados com muito rigor na educação. Era uma extensão de seu lar trazendo consequentemente uma atmosfera familiar ao seu estabelecimento durante os mais de vinte anos que funcionou.
O estabelecimento de Dona Sofia incomodava à vizinhança? Wilma Villaça afirma que não e justifica. Sofia ajudava a todos, fazia partos, comprava remédios para os pobres, era conselheira, encaminhava em um emprego, já que era bem relacionada na cidade. Seu estabelecimento era frequentado tanto pela elite local como pela arraia miúda. Quanto a estes últimos, antes de ir para a Sofia, um gole de cachaça no boteco Grito da Mocidade, também conhecida como “esquina do pecado”, já que a bebida era mais cara no lupanar. Sofia não fazia distinção de classe social em relação aos clientes e todos eram acolhidos da mesma forma. De acordo com Wilma Villaça os mais abastados “reservavam” suas favoritas que somente passavam a se relacionar com eles. Um empresário da cidade fechava de vez em quando o lupanar para exclusividade sua. Tudo acertado previamente com Dona Sofia e contabilizado.
O conhecido criador de jingle Jorginho Abicalil e frequentador habitué do local, nos legou em sua crônica um relato interessante sobre a rotina do Beco da Sofia. “…Ah, Dona Sofia da gargalhada rouca! Da tosse, do Liberty Ovais[marca de cigarro]. Da sua janela fotografa a Leopoldina Railway, para receber seus reis que desejam gozar e viver. São viajantes, caminhoneiros, H.T’s, marinheiros, fuzileiros navais, todos reis, cada qual com uma menininha no colo e uma brahma casco escuro na mão, todos reis por uma noite de prazer. E até os garotões metidos a sociais, tudo gente de fino trato, lá estão no beco, escondidinhos em seu recato. Estão todos vivendo o hoje das emoções, da mais antiga das profissões. Todos enlevados pelos encantos das meninas que ensinam prazeres do sexo. Sexo bom, bem iniciado, para nos deixar galantemente aliviados…”
O beco da Sofia não recebia qualquer moça-dama. Verificava-se a sua origem e antecedentes, sendo que elas vinham geralmente de municípios próximos a Nova Friburgo. Cada uma delas tinha o seu próprio quarto, alimentação feita por uma cozinheira e serviço médico pagando por isto uma pensão. O médico Feliciano Costa, comandante do Sanatório Naval, era quem dava assistência às moças fazendo exames periódicos. O lupanar era um casarão com aproximadamente quinze quartos. O espaço comum era um extenso salão onde se ouvia música como Vicente Celestino e Gilda de Abreu na vitrola, bebia-se e dançava-se com as moças-damas. Trajavam vestidos longos, como os de baile, relembra Wilma, com uma maquiagem bem destacada e cabelos bem penteados. Mas para sair à rua durante o dia, Dona Sofia exigia recato. Tinham que usar indumentária simples, sem maquiagem e terem um comportamento discreto. Nos programas feitos pelas moças-damas, Dona Sofia recebia um percentual através de um sistema de fichas. Impunha ordem no lupanar com energia e tinha uma “caixinha” para a polícia não incomodar e ainda dar segurança quando havia desordem provocada por baderneiros. Já houve caso de homicídio em frente ao seu estabelecimento em razão de disputa por uma mulher.
O movimento iniciava por volta das 17h e terminava madrugada adentro. Somente os rapazes do internato do Colégio Nova Friburgo, também conhecido como Fundação, frequentavam à tarde o lupanar. Eram frequentadores ainda os “H.T.”, como eram conhecidos os marujos tuberculosos internados no Sanatório Naval. A sigla H.T. significava hospital dos tuberculosos. Porém somente eram autorizados pelo comandante e médico Feliciano Costa a frequentar o lupanar os tísicos quase convalescidos da doença. Dona Sofia administrava e recebia os clientes juntamente com uma gerente. Altiva e de olhos agudos, corpo de sereia, mulher de porte, o salto alto erguia-lhe ainda mais a fronte empinada. Um espaço de sociabilidade o lupanar estava sempre lotado, era o rendez-vous da cidade. Alguns iam até lá somente para encontrar os amigos, não procurando o prazer carnal, lugar da camaradagem fácil. Outros iam em busca de um conselho e de uma boa prosa com Dona Sofia. Dali saíram matrimônios nos informa Wilma Villaça. Muitos homens tiraram as moças-damas “da vida” e se casaram com elas. Sofia batizou muitas crianças destes enlaces. Alguns casados “botavam casa” vivendo amancebados com suas favoritas.
Por fim o que mais impressiona é a tolerância da sociedade friburguense de um lupanar bem no coração da cidade. Percebe-se que tinha uma função social. Afinal, vivíamos em uma época em que as moças casavam-se virgens e seus noivos “aliviavam-se” nestes locais. Isto tranquilizava os pais pois evitava os namoros fogosos e investidas dos rapazes com as “moças de família” nos longos noivados. Isto talvez explique a tolerância das elites friburguenses. Quanto aos casados frequentarem o local, aquela tradição de que as “mulheres da vida” serviam para práticas sexuais que não se podia fazer com a esposa. No dicionário são conhecidas como bruaca, bucho, bagaxa, cróia, cocote, fubana, frega, fuampa, jereba, quenga, marafona, murixaba, michê, marafaia, rongó, rameira, tronga, vulgívaga, zabaneira, zoina, andorinha, égua, gança, mariposa, loba, mulher errada, perdida, transviada, do mundo, pública, da rua, da rótula, da zona, do amor, de má nota, de ponta de rua, do fado e do fandango. O certo é que Dona Sofia era muito respeitada em Nova Friburgo. O gerente de banco puxava a cadeira para ela sentar-se com toda deferência. O lupanar fechou no ano de 1962. Sofia de Carvalho Villaça faleceu em 31 de maio de 1976, aos 77 anos de idade. O Beco da Sofia marcou uma geração e quem explica isto é Jorginho Abicalil, por um local de “sacerdócio do prazer e da virtude”.
- FONTES: Entrevista com Wilma Villaça, neta de Dona Sofia e crônica de Jorginho Abicalil.
- Janaína Botelho. historiadora e professora da UCAM
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