Em 1884 ocorreu uma revolta de estudantes da Escola Politécnica do Rio de Janeiro em Nova Friburgo ganhando destaque no periódico Brazil Illustrado. Às cinco horas e ¾ de uma manhã de janeiro partiu o grupo alegre e ruidoso de estudantes em férias acompanhados de seus professores e pelo ilustrado Dr. Frontin. Tomando um trem especial os alunos da Politécnica fariam exercícios práticos na Estrada de Ferro Cantagalo até a linha férrea de Macuco, ponto terminal do trecho. Pegaram a barca na Prainha e percorreram as águas tranquilas da baía da Guanabara aportando na estação de Sant´Anna de Maruí. Já neste local examinaram detalhadamente todas as locomotivas Baldwin e Fell. O engenheiro Dr. São Paulo veio ao encontro do grupo por especial recomendação do diretor da Estrada de Ferro Cantagalo, Dr. Teixeira Soares, uma das glórias da engenharia brasileira.
Enquanto se subia a serra em direção a Nova Friburgo, os alunos observavam o monstro de aço contorcer-se numa das rampas mais íngremes do país soltando gemidos estridentes. Os alunos também contemplavam a paisagem esplêndida e feérica onde avulta uma floresta densa de árvores gigantescas da Mata Atlântica. Ouvia-se o sussurro longo das cachoeiras cujos ecos se misturavam ao ruído áspero da locomotiva em um dueto bizarro. Chegando a vila serrana o trem desceu suavemente o vale do rio Santo Antônio. Consideraram a Estrada de Ferro Cantagalo com graves defeitos de traçado, curvas muito apertadas, além de outros aspectos negativos. Nova Friburgo era conhecida por seu clima temperado, pelas suas águas cristalinas e boas condições higiênicas. Célebre “cidade de banhos” em razão das duchas aplicadas no Estabelecimento Hidroterápico ganhou notoriedade com este tratamento de doenças. Padecendo de moléstias, enfermos e convalescentes procuravam Nova Friburgo para respirar temporariamente os ares puros e saudáveis da salubridade de seu clima.
Na vila os alunos da Escola Politécnica foram abrigados em um estabelecimento de padres Salesianos. Tudo indica que estavam instalados na casa sede da fazenda do Morro Queimado. Os rapazes caíram na simpatia dos friburguenses sendo muito bem acolhidos. Uma prova disto foram os convites para as soirées organizadas nos hotéis que já regurgitavam de turistas cariocas que fugiam da epidemia de febre amarela na Corte. A primeira destas soirées foi no Hotel Leuenroth situado na rua de mesmo nome. O amplo salão de visitas era diariamente transformado para as soirées. Não faltava programa noturno aos alunos de Politécnica. Utilizo soirée pois dificilmente vamos achar naquela época a palavra baile, tanto nos jornais como na literatura. Consequência do afrancesamento das elites. Havia uma enorme afluência de moças “da melhor sociedade” nestes espaços de sociabilidade. Ao som do piano os pares voavam arrastados pela cadência da música com os pulmões arejados por um oxigênio tonificante e puro, escreveu um dos alunos. Dançava-se nesta época em Nova Friburgo quadrilha, valsa, tango, mazurca, polca e schottisch. Os rapazes estavam felizes na “bela Suíça”, de montanhas azuladas e livres da febre amarela e da canícula.
No entanto, estes rapazes passaram a ser hostilizados pelos padres Salesianos em seus sermões na missa. Segundo o articulista do Brazil Illustrado estes padres queriam “reformar Friburgo, transtornar completamente a sua vida, os seus usos e costumes”. Pretendiam tornar a cidade mais austera, devota e canônica deixando de ser “a vila alegre e prazenteira”. Enfim desejavam catequisar Friburgo, a vila mais adiantada, a mais progressista e a mais alegre da província do Rio de Janeiro. Os padres Salesianos destacados para Nova Friburgo não eram poucos e vieram de Praia Grande[Niterói]. Eram de diversas nacionalidades como portugueses, alemães, belgas e suecos. Foram descritos como esbeltos, rapagões e rechonchudos velhuscos. Segundo o articulista se instalaram em Nova Friburgo como uma “nuvem negra da desgraça”. O programa de reforma dos “pescadores de almas para o céu” ocupava o cristão quase o dia inteiro e não se tinha tempo senão para ser devoto. Às cinco horas da manhã o sino do campanário tocava chamando as crianças para a lição de catecismo. Em seguida vêm os devotos adultos para a ladainha, a missa, a confissão, a comunhão e os cânticos sagrados. Às quatro horas da tarde ocorriam as vésperas, sermões e mais cânticos. O programa era fielmente executado.
Nova Friburgo estava em vias de transformar-se completamente. As suas alegres e perfumadas manhãs, os seus divertidos e prazenteiros passeios passavam pela mais profunda mudança. Os friburguenses não tinham mais tempo para os passeios. Todas as suas horas eram tomadas para a devoção. As devotas viviam na igreja abandonando os afazeres do lar. As excursões a Village e as romarias a milagrosa fonte do suspiro tinham acabado. Dir-se-ia que o bando negro dos Salesianos cobriu Nova Friburgo de uma sombra fúnebre, pesada e que não deixava a população respirar, destacou o articulista. Tresnoitados, os meninos já não brincavam. Era preciso acordar às quatro horas da manhã para estar às cinco em frente igreja Matriz, arrostando o frio, a umidade e as constipações para assistir as lições do catecismo. Se chegam tarde, o padre ralha. Se não conhecem todas as pessoas da santíssima trindade não ganham registro nem indulgência. Meninas de quatro anos já comungavam. A afluência de beatas à confissão era tanta que os confessionários da Matriz não davam conta e foi preciso improvisar novos espaços. E tudo isso se passava em uma vila em comunicação constante com a Corte por meio da linha férrea. Curiosamente foi o juiz de direito quem estimulou a vinda destes missionários Salesianos para a pacata vila serrana. Acumulava as funções de juiz nos processos profanos e de diretor das questões de consciência espiritual. De acordo com o articulista as predicas dos Salesianos eram insulsas, insolentes, malcriadas e cheias de cacofonias, sobretudo do padre Borelli.
O motivo da perseguição foi uma soirée que os estudantes da Politécnica participaram no Hotel Leuenroth. No dia seguinte, no púlpito, o padre Borelli passou uma descompostura nos estudantes que foram chamados de pedantes, perdidos e causadores da falta de religião. Em razão das repetidas alusões insolentes feitas pelo padre Borelli aos estudantes, os professores exigiram uma retratação. Os alunos aproveitando o momento em que o diretor dos padres se recolhia dirigiram-se aos seus aposentos com o mais estrondoso dos Zé Pereiras atordoando os ouvidos do reverendo. Zé Pereiras é uma diversão carnavalesca em que os foliões tocam bombos. Depois destas pressões o padre Borelli prometeu se retratar. A notícia correra solta e no dia da retratação a igreja Matriz estava lotada. Os rapazes e os professores à espera da retratação prometida. No entanto, o padre Borelli fez uma retratação cavilosa e dúbia. O Dr. Frontin protestou dizendo que estava à espera de uma satisfação prometida e não sairia da igreja sem ela. Ouviam-se gritos de um lado Apoiados! Não Apoiados de outro! Seguiram-se apitos, gritos, desmaios de devotas, tumulto, grande chinfrinada, muito faniquito e confusão. Alguns beatos agrediram os estudantes. O engenheiro Moraes chegou a ser abotoado por uma senhora. Quem açulou o povo contra os estudantes foi o próprio diretor obscurantista da Escola Politécnica o conselheiro Galvão que aconselhou os friburguenses a se armarem e enxotarem os estudantes da vila. Depois de muita confusão e cenas ridículas, nem o povo tomou o conselho do conselheiro, nem as devotas espatifaram os estudantes. O padre teve que subir novamente ao púlpito e finalmente fazer a retratação, caindo no ridículo e “fazendo a mais triste figura”. Os rapazes vitoriosos retiraram-se da igreja na melhor ordem e tiveram grandes manifestações de simpatia dos friburguenses.
Mas este episódio não eclipsou a alegria dos alunos da Escola Politécnica. Depois deste tumulto voltaram a se divertir nas soirées apesar de continuar a propaganda dos Salesianos e dos devotos contra estas festas. Foi feita uma homenagem aos estudantes no hotel Salusse comparecendo a alta sociedade friburguense. O salão do hotel resplandecente de luz reunia “tudo quanto há de mais distinto e elegante atualmente em Friburgo”. A Sra. Leitão da Cunha muito elegante na sua toilette cor de café; a Sra. Arzila Macedo muito distinta de rosa e branco; a Sra. Azia corpinho preto e vestido branco; uma jovem viuvinha ainda de luto; as Sras. Brany, Marques Braga, entre outras, eram verdadeiras teteias. O cotilhão dirigido pelo Sr. Quarré estava divertidíssimo. Do francês cotillon trata-se de antiga dança de muitos pares, entremeada de várias músicas e distribuição de brindes pela qual se usava terminar um baile. Dançou-se até a manhã animadamente. Os padres Salesianos se retiraram de Nova Friburgo e dois anos depois deste episódio a sede da Fazenda do Morro Queimado foi comprada pelos jesuítas que fundaram o Colégio Anchieta. As soirées na divertida vila de Nova Friburgo deixaram boas recordações e ganharam um artigo na Revista Ilustrada.
Fonte: Revista Ilustrada, Ano 9, n° 370
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